quarta-feira, 20 de abril de 2016

construindo uma saudade...

Olho para o meu antebraço e ele não é mais uma ponte.
É só um antebraço, e sinto uma saudade imensa.
Quando éramos pequenas, antes de dormir, já deitadas, esticávamos nossos braços até a cama uma da outra, e com eles fazíamos uma ponte que ligava a sua cidade à minha. Ali ficávamos até dormir, criando personagens cheios de histórias, que iam e vinham atravessando sobre o rio. Eles não tinham corpos, eram só ‘perninhas’  feitas com nossos dedos, e passeavam por aquele espaço onde tudo podia existir. O sono vinha sem teimosia, porque além de ponte, aquilo era carinho. Era delicadeza. Uma cócega. E isso era quase mais legal que os personagens passeando pela ponte.

Minha filha, deitada quietinha ao meu lado, me faz sentir saudade daquelas noites antigas.
Nem penso.
Estendo o braço e pouso sobre a barriga dela, com a outra mão faço ‘perninhas’ e começo a caminhar.
Os olhos dela brilham.
Para crianças não é preciso muita explicação.
Ela também faz ‘perninhas’, e, sorrindo pra mim, me lembra que somos capazes de fazer uma ponte em 10 segundos.
Sei que construí ali, mais uma saudade para sentir amanhã.

Solange Maia

domingo, 10 de abril de 2016

o pecado dela era cometer alegrias...

Era difícil não enxergar a honestidade e o sentimento que ressoavam daquele gesto, mas parecia que ele não via. Só o que via era aquela mulher colorida, risonha, que, pasmem, era sua esposa, tirando fotografias de si própria e demorando um segundo a mais em tudo o que fazia. Duas coisas eram evidentes, o incômodo que ele sentia, e a alegria vinda dela. Ela estava feliz, era claro. Maquiagem bem feita, roupa nova, um lenço florido envolvendo o pescoço, salto alto. Vestia seu sorriso mais bonito.

Aeroportos têm dessas coisas. Ali, às vezes, realizam-se sonhos de uma vida inteira, e talvez, só o que ela quisesse, fosse registrar um pouco daquela alegria.
Esse era o seu pecado: estar feliz.
E o olhar do marido, sempre altivo, condenava cada gesto seu.
Talvez ele nunca tivesse experimentado dessas felicidades que de vez em quando transbordam.
Talvez ele nunca tenha cometido

O rosto dele, crispado, dizia: meu Deus, o que os outros vão achar ? Uma mulher de 50 anos fotografando o check in ? Qual pode ser a graça de registrar uma bagagem rolando numa esteira ? Fotografias dentro do avião ? Cafonice. Com a comissária ? Inconveniente. Da refeição a bordo ? Falta completa de polidez. 
Era evidente que aquilo o irritava, pois a repreendia sem cansar.
Era rude, e assim ficou, minando cada gesto da esposa, ensimesmado, convicto em suas certezas, ironizando com a voz alta, e endurecendo o gesto.
Ela fazendo um esforço danado para não se abalar, mas já se podiam perceber outros passageiros olhando para os dois, encabulados.
Tentou mais um pouco manter a alegria, mas, ele tanto fez, que acabou empalidecendo sua autoestima.
Seu sorriso, antes tão corajoso, ganhou curvas foscas.
A mulher alegre e segura dissolveu-se.

Foi a constância dele que cansou a leveza dela.
E agora qualquer um via,
ela ainda estava lá, mas ao mesmo tempo, tinha ido embora.

Solange Maia

domingo, 3 de abril de 2016

quando as coisas (e as pessoas) eram amadas...

Lembro-me daquela escadinha caseira, de madeira antiga, que todo mundo tinha em casa. A da minha Avó ganhava pintura nova todo ano. Já tinha sido de tantas cores que seu desgaste natural tornava-a ainda mais bela, aos meus olhos de criança era um prisma luminoso sem precisar ganhar pintura alguma. Mas era o que estava além da escada que me gerava encantamento. Gostava mesmo era de ver Vovó em seu último degrau, com o espanador de pó nas mãos, limpando cuidadosamente seus livros. Isto sim me fascinava. Ela limpava um a um. Os preferidos, lembro bem, eram encapados cuidadosamente com papel pardo, “O Tempo e o Vento”, numa dessas edições de capa dura e brochura, tinha até o desenho de um casal, feito por ela, a lápis colorido, na capa de papel.
As coisas eram assim.
Mais ‘cuidadas’.
Mais duradouras.
O livro que era dela seria da minha mãe, depois meu, em seguida da minha filha, e assim por diante.

Era assim que aprendíamos um pouco sobre o significado das coisas. Elas não eram feitas para serem consumidas e descartadas, como fazemos hoje. As coisas eram amadas, viravam heranças para as próximas gerações, tinham histórias além da história, e jamais se falava em preço, as coisas eram medidas por seu valor.

Olho uma pilha desses livros de bolso, versões fininhas e resumidas, sendo vendidos em bancas de jornais, e sinto saudade de tudo isso.
Sinto solidão nesse tempo de coisas feitas às pressas, sem importância, dessa descartabilidade que nos põe tão frágeis e tão pequenos.
Falamos com tranquilidade sobre a importância da imediata substituição das coisas, afinal, num mundo de tanta fartura, se não está bom, é só trocar. Trocamos até mesmo pessoas.
Sim, pessoas passaram a ser substituíveis, existem muitas, para que investir em alguém se este alguém não é exatamente quem você deseja?
Transitoriedade é palavra de ordem.
Seja incrível, por favor, ou lanço-te fora.

No reverso desta medalha estamos nós, assustados, podendo ser jogados fora a qualquer momento, nos esforçando para mostrar esta ou aquela qualidade, desejando, pelo amor de Deus, que elas bastem.

O que faço agora, que não caibo nesse mundo, pois só o que me vem à cabeça é a permanência dos livros de minha Avó, e as palavras de Mia Couto?
Amo o que não tem despedida.

Solange Maia