quarta-feira, 25 de maio de 2016

na outra margem...

Ela finalmente fechou os olhos.
E isso representava tanto.
Permitiu-se.
Entregou-se àquela pequena euforia sem reservas.
Descobriu que a entrega precisava de sentido, de significado.
Só assim ficava vazia de medos.

Ia sendo conduzida pela água, o cabelo longo, disperso, deslizando enquanto desenhava espirais que pareciam redemoinhos minúsculos enfeitando a superfície.
Ele sabia que ela estava cansada de ser devorada pela tristeza e que precisava de um bom motivo para voltar a acreditar, então, sem saber o que fazer, cantou no ouvido dela. Não uma música inteira. Escolheu só as palavras pontuadas de afeição.
Ensinou-a a existir dentro dos gestos.
Aos poucos ela foi cedendo, os corpos amolecidos foram sendo atravessados por gemidos, sussurros e palavras sem bordas.

Em um par de minutos ela já queria ser perfume na pele dele.
E não estar mais alheia aos afetos.
Ele soube riscar um circulo na água em torno do corpo dela, e guardá-los ali.
Apresentou-a ao bom silêncio.
E ela finalmente fechou os olhos.

Ela ainda tinha sim, medo da quietude da água e de seus abismos, mas percebeu que na outra margem
o amor podia ser possível.

Solange Maia

(fotografia de Henri Cartier Bresson - ITALY - 1933)

quarta-feira, 4 de maio de 2016

hoje não quero aprender...

Concordo com o velho jargão de que temos que nos tornar, diariamente, pessoas melhores.
Viver é um passeio finito.
Não há tempo a perder.

Mas hoje, só por hoje, queria descansar nos meus erros.
Não aprenderia nada.
Seria só o que sou, livre da obrigação de estar o tempo todo alerta, de me esforçar para ser sempre alguém melhor.
Hoje eu bastaria, assim como sou.

Aceitaria o meu ‘não saber’ como órfão, um ‘não saber’ apenas, sem profundidade alguma.
Não me sentiria devendo nada para ninguém, não estaria aquém, não haveria falta.
Cuidadosa, claro, comigo e com os outros, sem ser leviana ou deliberadamente descuidada.
Só distraída. Leve. Livre.
Perdoaria fácil, e me sentiria perdoada.
Seria suficiente.

Afinal, reconhecer algumas limitações como características humanas, nos permite descansar nessa legitimidade.
E mais vale um erro a ser trabalhado, do que essa hipocrisia da bondade perene.
Cansada dos belos discursos dessa gente tão “evoluída".
Acreditam no próprio personagem, mas vivem sufocados por uma busca que não são capazes de resolver.

Errar nos convida a um exercício de humildade, muitas vezes nos dá nossa exata dimensão, e ainda nos faz conhecer o tamanho dos nossos vazios.
Ademais, errar, muitas vezes é só uma interpretação. Só um dos lados da moeda. Erros, de vez em quando, escondem acertos que só serão reconhecidos com o tempo.

Sim, temos que nos tornar, diariamente, pessoas melhores, mas desconfio que a melhora acontece é na lentidão das horas, na duração da vida.
Abreviar isso seria cometer um crime, acreditar numa mentira, abreviar a vida.

Desculpem-me os muito certinhos,
mas errar, de vez em quando, salva o mundo!

Solange Maia