sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

soberana e atrevida...

A imagem pode conter: noite
Como se ela, por si só, não bastasse.
A morte, soberana e atrevida, traz à tona outras solidões.
Não dói só pela perda, pela irremediável finitude ou pela secura.
Dói pelo afago que não demos. Não somente em quem partiu. Por todos os afagos afogados na correria dos dias. Dói por escancarar nossas faltas, por dar à luz às sombras. Por parir nossas ausências.
.
Nessas horas nossas almas se perdem, e pedem, silenciosas, por qualquer conexão. Pedem por alguém que nos lembre de quem somos. Pedem por mais tempo, pedem outra chance, pedem perdão.
Pedem, mas nem sei se são ouvidas. O que foi, foi.
.
Acho que é porque quando uma vida cessa, cessam as chances. Sentimos pressa. E vazio. E saudade. E medo.
E tudo isso nos remete um pouco a quem se foi e um pouco a nós mesmos. A quem somos. A quem fomos.
.
E já foi.
É quando percebemos que o discurso devia ter virado gesto, o abraço precisava ter sido dado, a música precisa ter se tornado dança, a visita ter sido realizada, o telefonema feito, o amor confessado.
Não dá para deixar para depois.
A morte, soberana e atrevida, traz à tona uma única certeza.
Não existe depois.
Não. Não existe.
.
Solange Maia

sábado, 1 de fevereiro de 2020

ela é uma promessa...

A imagem pode conter: planta
Rego delicadamente cada porção de terra sem desviar os olhos. Sei que há um desvendar acontecendo naquele instante, um movimento que ainda não se percebe, um segredo descansando na terra.
Cada uma daquelas sementes guarda uma história longeva. Um mistério quase sempre indecifrável, uma ancestralidade intangível.
Amo saber que uma árvore inteira está ali, dentro daquele mínimo grão. E que cresce em silêncio num solo que provavelmente já a aguardava. Amo esse milagre tão fácil.
Essa abundância tão disponível.
.
Já há alguns meses tenho sentido profundo encantamento por elas.
Mas só ontem me dei conta do meu semear.
Deitada no sofá, no final do dia, meus olhos cansados encontraram, na minha varanda, uma paisagem inesperada: casquinhas rompidas e pequenas mudas saindo da terra. Uma castanha portuguesa, um pinhão, ervilhas e, minha preferida: pitaya vermelha.
Sementes me fascinam porque têm grande potência de vida.
.
E vida é um assunto que sempre me interessa.
Tanto quanto me assusta a possibilidade de deixá-la escapar.
Esta semana ouvi que o passado muda todo dia. Nele se acumula qualquer vida que não seja a contida neste instante.
Pensar que enquanto escrevo essa linha ela já não é minha, já faz parte do que não tenho.
É o agora se acomodando entre tantos outros passados.
.
A semente não. Ela guarnece o amanhã. Contém o futuro. É uma promessa.
Talvez por isso o meu encanto.
Cada minúscula folha que sai da terra salva um continente. Desafia a morte. Impede a finitude.
Assim como nós em nossa travessia diária. Somos o óvulo maduro e já fecundado da terra. Somos vida mesmo quando parece que não. Somos reservas e restauros. Promessas também.
.
Porque toda semente tem uma vida escondida dentro dela.
Assim como toda pausa protege um recomeço.
Agora quando sinto um hiato o acolho.
Mas só sossego quando rompo a terra.
.
Solange Maia