sexta-feira, 3 de abril de 2020

sem abreviar o sagrado...

A imagem pode conter: uma ou mais pessoas
No início Bebela teve aulas de piano com um maestro.
Sempre que podia, eu chegava mais cedo para buscá-la só para me dar de presente o prazer de vê-los tocar.
Era fácil perceber o imenso amor e respeito que ele sentia pela música. Mais ainda pelo piano.
Ensinou a ela como decifrar uma partitura, conhecer a teoria musical, o solfejo, um metrônomo, o compasso e a postura física, para só então deixar que ela colocasse as mãos sobre as teclas.
- Sinta, Bebela, elas são entidades vivas. Você precisa se conectar afetivamente às teclas, depois ao piano todo. Sem isso não poderá continuar.
E deixava ela ali, dez, quinze minutos sozinha. Para que vivesse a experiência.
.
Ela, pequenininha ainda, seguia as instruções admirada.
Olhava as teclas demoradamente, tocava de leve, depois com mais intensidade até que começasse a tocar.
Amava música. E o piano também. Preferia o Conservatório a aulas de balé.
.
Numa daquelas tardes em que cheguei mais cedo, assisti uma lição que jamais vou me esquecer.
Bebela acabou a música e imediatamente levantou-se. Eufórica, queria me ver e saber o que eu tinha achado.
Foi surpreendida pelo carinhoso Maestro:
- Isabela, quando acabar de tocar, não tire simplesmente as mãos do piano. Inspire, agradeça em silêncio pela música que acabou de tocar e só então levante as mãos, bem devagar. Sinta o amor. Saia com reverência do piano, respeite a alma da música.
.
Fiquei pensando no sagrado que estava ali na minha frente.
O maestro construía com ela um olhar diferente. Ensinava muito mais do que música.
E eu aprendia com eles.
.
Diante de pessoas assim o mundo ganha outro significado.
Que bom se soubéssemos tocar também as pessoas daquela maneira.
Com reconhecimento pelo ineditismo de cada um.
Com gratidão pelo que nos é entregue, pela prontidão de cada coração.
.
É, diante de pessoas assim o mundo ganha outro significado.
Por mais que ao nosso redor o mundo transite entre o profano e o divino, por mais que nos mostre destruição, egoísmo e volatilidade, haverá sempre uma esperança, sempre um sopro divino, uma faísca amorosa que nos salva da infrutuosidade.
.
Nunca mais Bebela simplesmente tirou as mãos do piano.
Nunca mais abreviamos o sagrado.
.
Solange Maia