quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Maria da rua...

Maria fazia uma coisa com as mãos.
Segurava nas dele com firmeza, criando um elo, um vínculo, sem qualquer hesitação.
E permanecia nele até que o tempo sumisse.
A dor não. A dor, ela sabia, ainda estava lá.

O lugar era pequeno, muito pequeno, no rodapé sálvia, alfazema, alecrim e manjericão. Folhas quentes perfumando o ambiente.
Eram para proteção.
Algumas velas, ventania só lá fora.
Ali dentro tudo era densidade e calor.

Maria ecumênica, que veste branco e tem sempre os pés descalços. Maria generosa, que faz canjica e que abre as portas de sua casa.
Maria que é mãe, que é abrigo, que é densa.
Maria que é doce, que é abraço e que é coragem.
Maria das dores e das solidões.
Maria da rua.
Maria que eu nunca vi, mas sei que é boa.
Maria de fé, do cais e do caos.

Quietude. Até que, de repente, um arfar rompe o silêncio seguido por um choro doído.
Era Maria, ampla, levando embora aquela dor.
Era sempre assim. E dava sempre certo.
Ela fazia alguma coisa com as mãos.

Ave, Maria. Salve tua graça.
E rogai por nós.

Solange Maia
08/12/2015

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

então o amor esfria?

Hoje, lá perto de casa, um casal chamou minha atenção. Ele caminhava muitos passos na frente dela. Havia um vale imenso entre os dois, qualquer um podia ver. Essa indiferença me entristeceu. Onde foi que isto aconteceu? Ela tão bonita e ele tão interessante. Em que parte da relação eles pararam de se desejar? Porque ainda iam juntos ao mercado? E juntos na vida?

Lá dentro, nos cruzamos mais uma vez, ele perguntando se deviam levar pêssegos ou ameixas, ela erguendo os ombros sem mover os olhos, como quem diz, sem precisar de palavras, que pouco importava.
Já não havia paladar, nem vontade de experimentar, não diferenciavam mais os sabores. Um pêssego ou uma ameixa, tanto fazia, já não lembravam mais do gosto de um, ou do outro, não havia mais mimos ou dengos, não se descascava a fruta, enfeitava o prato ou aquecia o leite.
Tudo morno.

Mas em algum tempo haviam sido apaixonados, sentiram ternuras e arrepios, escreveram bilhetes, acariciaram-se, dormiram de conchinha, contemplaram paisagens no bom silêncio, riram deles mesmos, encontraram alegrias nas coisas singelas, esperaram o outro para jantar, tomaram vinho, fizeram planos, passaram perfume, levaram toalha seca na saída do banho, separaram o travesseiro mais macio para uma noite de sono especial, levaram café na cama e escreveram recadinhos no espelho do banheiro. Beijaram-se demoradamente, posso apostar.

Então como viraram aquilo que eu estava vendo?
Não havia mais nem admiração, nem amizade. O sentimento havia mudado, era evidente. Acreditavam não ter mais idade para febres ou paixões. Talvez tenham crescido em direções diferentes, talvez tenham negligenciado a relação, se acomodado na certeza de que as coisas eram assim para todo mundo e que, o que valeria a partir de agora, era saber que tinham alguém. E pronto.
Como assim?

A vida pode ser tão melhor...
E o amor precisa (e merece) ser cuidado, estimulado, desejado.
É atemporal. É delicioso.
E dá trabalho! Dá muito trabalho.
Porque morre no descuido, na preguiça, na maldita certeza do amanhã e, sobretudo, na indiferença branda que muita gente gosta de confundir com ‘efeitos do tempo’.

Não acredito nisso.
Dê àquele casal novos parceiros... e duvido que ele andasse tão à frente dela, ou que ela nem respondesse mais às perguntas dele.

O amor é uma das melhores coisas do mundo, mas não aceita indiferença.
Nela, morre.
Morre.

Solange Maia

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

experimentando o vazio...

(fotografia clicada por mim - Deserto de Mojave - 15.out.2015)

As 15h59 o termômetro marcava 117 °F, ou seja, 47,22°C, no Deserto do Mojave. Eu estava lá, contemplando aquele cenário inóspito chamado Vale da Morte.
Outubro. Ninguém num raio de 40 ou 50km. Nada, nem água, nem gente, nem casa, nem posto de gasolina. O GPS era uma tela em branco. Ninguém mapeou aquele lugar, o sinal desaparece. Desaparece a vida. Nenhum bicho, nenhuma ave, nenhum réptil, nenhuma planta.
Nenhum verde.
Aos poucos desaparece o tempo, a saudade, a memória. Desaparece o passado.
Nenhuma nuvem, nenhum som.
A impressão que tive é que de repente parei de respirar.
O sol irradiava um clarão ofuscante e dramático, mas parecia noite. De uma escuridão exagerada, interna, eu sabia. De uma rudeza áspera.
De uma beleza absurdamente solitária.
Olhar esse nada, estranhamente, me devolvia a mim.
Eu já havia sido cada uma daquelas pedras, cada centímetro daquele vazio.

Senti necessidade de fechar os olhos para existir.
E ali fiquei, experimentando aquela ‘não existência’  até que encontrasse o final dos meus medos.
Mas estava quente demais, e os quase 50°C me devolveram rapidamente à realidade.
Abri os olhos e o sol incandescente impunha seu calor, simplesmente. Cada coisa existindo, exatamente como devia ser.
O bicho pequeno, rasteiro, para diante de mim e riu.
O nada é habitado, eu já sabia.
Devagar, e aos poucos, fui voltando a respirar.
E lá estava o deserto e suas encostas coloridas, cheio de dunas onduladas e de um horizonte que não acaba.
Cheio de um vazio tão necessário.
Bonito é quando a gente percebe que somos todos feitos desses pedaços desabitados, embora, assim como no deserto, o vento, os cactos, o escorpião, a serpente, o falcão e o lagarto, estejam sempre ali.
Sempre ali.

Solange Maia

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Livro a VENDA !!!

Queridos amigos leitores,

O livro ficou pronto!
E está lindo... 
Uma experiência deliciosa nascida dos muitos encontros fantásticos que tivemos. Pessoas que nunca havíamos visto antes, mas que, aqui e ali, nessa imensa cidade em que moramos, chamaram nossa atenção e viraram nossos 'personagens'. São rostos cheios de histórias para contar!
Falamos sobre coragens, saudades, vazios, amores, e todos aqueles sentimentos dos quais não podemos nos esquivar...

Escrever com o Helder fez a coisa ser ainda mais gostosa!
Tem contos meus, dele, e nossos... todos feitos para vocês!

O livro está muito bacana, tem capa dura, 25x23, uma composição entre imagens e textos de tirar o fôlego... Não deixe de ter o seu!

beijos carinhosos... 

ESTÁ A VENDA AQUI !
R$ 60,00

PRESENTEIE QUEM VOCÊ AMA COM SENSIBILIDADE 
E COM DELICADEZA!
Podemos enviar com dedicatória especial...

A entrega pode ser feita pelos Correios em qualquer lugar do Brasil ou do Exterior.

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

finalmente, o lançamento...

Será uma imensa honra ter vocês, meus amigos e leitores, presentes neste próximo dia 27 de novembro, domingo, lá na Livraria da Vila do Shopping JK Iguatemi (São Paulo).
Quero abraçar cada um de vocês!
O livro nasce maravilhoso... 

beijos,
Solange Maia

sábado, 29 de outubro de 2016

essa mulher não quis mais...


Sim, ela está acima do peso; O cabelo precisando de um corte, e a roupa meio fora de 'moda'.
Mas você já parou para conversar com ela? Sabe do que o abraço dela é capaz? Ela já te contou as coisas que viveu? Já sentiu o calor de sua mão, ou foi olhado demoradamente por ela?
Se não, você não sabe nada.
Não sabe o que pode estar perdendo.

Para ela, o único padrão aceito é aquele que a deixa feliz. Investe seu tempo em ser um ser humano melhor. Sabe tocar um coração e faz com os quilinhos extra o que bem entende!
Ela escolheu ser linda, exatamente como é.

Essa mulher representa milhares de nós. Afinal, atravessamos gerações de silêncios e de opressão, e ainda somos reféns de padrões e de modelos.
Até que algumas se cansam. Negam-se a continuar.
Como ela.
Ela não está mais disposta a isso.
Esta mulher não quis mais.
Ela gosta do seu corpo, das suas cicatrizes, das marcas de expressão, da vida impressa em seu rosto, dos eventuais cabelos brancos, e dessa liberdade conquistada a duras penas.

Essa mulher pode, e vai, ser sempre o que ela quiser!

Solange Maia


domingo, 25 de setembro de 2016

Lá no Fim da Infância

Um desejo narcísico e vaidoso o levou até onde estava. Era tido como uma das principais referências entre os grandes executivos do país.
Caçula de uma família de cinco irmãos, doce e sorridente, até perceber que nunca era visto. Não como alguém merece ser visto, com vagareza.
Todos o conheciam por Duda, mas seu nome era Pedro. Duda, na verdade, era o irmão mais velho, de quem herdara o guarda-roupa, e a identidade por consequência, tamanha a distração dos que o cercavam.
Sempre confundido com Duda, e cansado de tentar explicar, resignou-se.
Sufocado por esse anonimato doloroso, um dia, lá no fim da infância, decidiu que tudo seria diferente. Encontraria seu espaço, fosse qual fosse o preço a pagar.
Focado, logo se tornou Petrus, o melhor no que fazia. Mérito exclusivo dele. Soube percorrer com precisão a estrada até lá.
Mas nele, uma porção de sonhos ficava escondida atrás do olhar, quase sempre, à deriva.
Investia grande esforço para controlar variáveis incontroláveis. Perfeccionista ao extremo, dizia a ele mesmo, o tempo todo, onde devia chegar. E, de alguma forma, sempre chegava. Então, boa parte dele enchia-se de orgulho. Mas a outra parte, poucos sabiam, morria.
Morria porque estava exausto de fazer o que não amava, e, em dias assim, nem percebia, mas estampava no rosto uma austeridade assustadora, que o envelhecia muito. Nessas horas não era nem Pedro, nem Petrus. Tampouco era Duda. Era só um vazio, um oco, um eco.
Eram dias que viraram semanas, meses, anos, até que desaprendeu a sorrir.
Acumulava recompensas que não queria. Tinha motivos pelos quais muita gente se orgulharia, mas ele não. No final do dia, sempre sozinho e exaurido, na frente do espelho, seu semblante não mentia: tinha quase nada por dentro.
Muitas camadas por fora, sobrepostas umas às outras, mas elas não escondiam o menino que havia sido um dia. Não para ele.
Ninguém abandona a infância de onde veio, nem o menino que um dia foi.
Petrus, em noites assim, sentia saudades do Duda que, sem ser, havia sido.
Quando menino, sofria de alguma invisibilidade, mas sabia sorrir.
Sim, sabia sorrir.

Solange Maia


Este é um dos 22 contos do nosso livro "Histórias que os Rostos Contam"... o único que vamos publicar.
A história foi inspirada no rosto de Antônio, personagem que tem uma história de vida incrível. Foi motorista de noiva, Gerente de Telemarketing, teve carros e imóveis, mas depois de perder 3 filhos, teve uma depressão profunda que só curou no meio da natureza. Virou jardineiro!...
Quer saber mais?
Quer ler outras tantas histórias lindas, que falam de amor, de saudade, de coragem, de medo, de vergonha, de orgulho?
Estarão no livro, que será publicado em Novembro.
 Clique para conhecer mais...

terça-feira, 13 de setembro de 2016

ele queria uma mulher que tivesse fome...

 
Dessas mulheres que fazem parte do imaginário masculino desde o inicio dos tempos.
O corpo e o rosto pareciam esculpidos por Philippe Faraut.
Falava quatro idiomas, conhecia o mundo, portava-se com elegância, e perdoava tudo.
Olhou pra ela, ali, deslumbrante... mas ausente.
Apagada dentro dele.

E assim percebeu seu imenso cansaço.

Sentiu que não queria mais mulheres ótimas.
Estava cansado de Helenas.
Sempre encantadoras, boas de conversa, inteligentes, magras, perfeitinhas. Mas tudo nelas parecia atenuado, impassível até, se ousasse definir. Faltavam-lhes cores. Graça.
Boas para desfilar por ai, mas geralmente ilegíveis. E, quase sempre, ilegítimas.

Andava tendo pensamentos infinitamente miseráveis, sentia fome de crueza.
Queria alguém de verdade, que viesse com todas as emoções humanas, porque perdas e fracassos, além de inevitáveis, eram o tempero que andava lhe faltando.
Alguém que se divertisse com os próprios erros, que o fizesse sentir, pelo menos de vez em quando, que era ele o cara especial, o homem incrível.

Queria alguém que tivesse fome, que pedisse pizza, que escolhesse sabores que nunca tenham experimentado, que propusesse lugares triviais, fora do jetset, que não fosse previsível. Alguém que atravessasse o rio, que desejasse o outro lado, que conversasse com estranhos, que esquecesse vírgulas, que gostasse de prazeres sofisticadamente mundanos.
Uma mulher de excessos, ardente, intensa, curvilínea, com cheiro de pele, cabelo de ventania e olhos estrábicos.

Helena era incrível.
Mas era uma ausência.
Tinha certeza que se ela fosse menos, teria durado mais.

Solange Maia

domingo, 4 de setembro de 2016

sorte bonita e gratidão...

Escrever o "Histórias que os Rostos Contam" foi um presente cujo valor não consigo mensurar.

Saímos às ruas em busca de rostos interessantes (e quais não são?) que nos inspirassem a escrever contos. E escrevemos. Foi uma delícia. Rostos são jardins secretos...
Pessoas, nunca antes vistas, sentiram-se tocadas. Todas. Abordadas por estranhos, que éramos nós, abriram seus corações sem resistência, e, além de emprestarem suas imagens para que pudéssemos falar de saudades, de coragens, de vazios, de amores, ainda nos presentearam contando suas histórias. Ah.... e que histórias.... tão tocantes, tão comoventes. Sorte, sorte, sorte. Que lindo, meu Deus. Tanta sinceridade sendo acolhida por nosso amor maior. Tanta confiança, tanta ternura... e estão todas lá, no livro lindo que acabamos de escrever.

Parece inacreditável, mas tem acrobata que dá aulas de gramática para poder voar. Tem quem more na rua, mas que já foi jardineiro de presidente da república. Tem que sonhe com a volta de um pai que não aparece há mais de 50 anos. Tem quem escreva histórias para crianças cegas. Tem uma lindeza que está gravemente doente, mas é dona do melhor sorriso do mundo. Tem quem sonha com um grande amor. Tem ele. Tem ela, Tenho eu. Tem você...

Estamos todos lá, naquelas páginas...
Todos lá.

Porque depois de um tempo, a história do outro, nos atinge emocionalmente, é um espelho, não olhamos mais para ela como sendo a vida do outro, nossos olhos ficam voltados para nós mesmos, é a nós que estamos vendo.
É a nós...


Solange Maia

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

R$ 50,00 por um livro precioso....


Deutério, Tarsila e André são mais 3 personsagens do "Histórias que os Rostos Contam".

O livro já está pronto! 
Em novembro, você o terá em mãos. Só falta o 22º rosto, que pode ser o seu!

Comprando agora, na pré-venda, você ganha um desconto de 16%, terá seu nome nos agradecimentos do livro, recebe alguns "mimos" e nos ajuda a imprimir mais exemplares! 

Confira em http://bit.do/rostoscontam.
Saiba mais em www.historiasqueosrostoscontam.com.br.

terça-feira, 30 de agosto de 2016

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Finalmente, O LIVRO !!!


Queridos, é com muito orgulho que convido todos a conhecerem o livro que vou lançar em breve, com meu parceiro na vida, Helder Conde.

"Histórias que os Rostos Contam" é um livro delicado, de capa dura, com belas fotografias, que traz histórias de 22 personagens, inspiradas em fotografias de pessoas reais. Um convite a olhar o outro. E a si mesmo.

Dá lá uma conferida. E, se gostar, o livro já está em pré-venda, no Kickante:http://www.kickante.com.br/…/livro-historias-que-os-rostos-…

Ah! E estamos procurando o 22º (e último) rosto do livro! Ajude-nos a encontrar! Mais informações estão no site http://www.historiasqueosrostoscontam.com.br e na página do Face (https://www.facebook.com/Hist%C3%B3rias-que-os-Rostos-Conta…)

Beijos a todos!

Solange Maia

terça-feira, 23 de agosto de 2016

ele não precisa ter rosto...

Dizem que são como talismãs que conferem proteção a quem os toca.
Que são veículos para outros mundos, que invocam espíritos e curam...

O silêncio do Red Rock State Park, em Sedona, era entrecortado pelo barulho quase imperceptível da água correndo suavemente por seus canyons vermelhos e suas encostas quase verticais, marcando o compasso da terra, um ritmo que parecia ser o do mundo. O cenário era deslumbrante.
Já teria bastado.
Mas a vida, surpreendente como é, quis mais.

Algo acontece no silêncio.
Um tum-tum-tum vindo da floresta, do rio.
Um tum-tum-tum-tum-tum-tum-tum-tum-tum difuso, contínuo e sucessivo.
Era um tambor, eu sabia, mas qual tambor ? 
E... vinha de onde ?
Caminhei em direção ao som até que finalmente vi aquele homem.

Meu coração se oculta nas sombras, entre as folhagens na beira do rio.
Fiquei ali um tempo longo e indefinido, de cócoras, não querendo ser vista, com medo de que, sendo, ele saísse daquele estado emocional mágico e todo o Universo se desfizesse.

Era um homem maduro, grande, forte, parecia estar ali sem estar.
O rosto escondido pelo tambor xamanico me permitia somente a sombra de seus contornos.
Bastava.
Tudo foi ficando disperso a minha volta. Sentia só a gravidade, o cheiro da terra, e um pertencer nunca antes vivenciado.
Experiências assim devem ser respeitadas.

Pretendo seguir sem nunca saber que você é.
Mas te agradeço, porque tua viagem me levou contigo.
Felizmente existem os canyons.
E essa saudade é um infinito inteiro dentro de mim.

Solange Maia

(Fotografia tirada em 'Red Rock State Park', em Sedona, Arizona, em 03/10/2015)

terça-feira, 9 de agosto de 2016

Monumentalidade...

Adriana é sólida, majestosa, feita de linhas retas.
Rafael sorri jocoso, imponente, altivo, sem nunca perder a doçura.
São dois.
Mas só até que toque a primeira nota e deem o primeiro passo.
Nessas horas não se sabe se dançam ou se levitam.
Se são dois, ou se são muitos.

Deslizam por terras vulcânicas feitas de fogo e vento, desafiando a vertigem, domando os músculos e o ar.
Dançam com generosidade. Emprestam vida e história a cada movimento.
São autores e intérpretes, um casal. E têm a beleza desolada de quem busca o outro só para depois poder partir.
Perdem-se só para depois poder se achar.

O espaço que existe entre eles é denso, tangível, tocável.
Forjam ouro, esculpem pedra, talham madeira, escrevem poesia.
Cometem explosões de dureza que se transformam em mãos macias, que deslizam sinuosas pelo outro, movimentos sincronizados de curvatura precisa, perfeitos.
Viram música, segredos, rasgos, sulcos.
Contam histórias de desejos e preliminares úmidas.
Uma grande obra feita de pequenos movimentos. Minúsculos detalhes com a grandeza das catedrais.
São fluidos, orgânicos, imensos.

Seus corpos cheios de possibilidades desafiam o ar, mesmo sabendo que não podem fazê-lo. Fundem-se a ele, o respeitam como mestre, como amigo. Cometem a entrega. 
Abandonam-se.
Têm esse dom... o da monumentalidade.
Firmes sobre seus pés, morrem a cada passo, mas surgem generosos no passo seguinte.
Um presente que não temos como agradecer.
Com eles aprendi que dançar é uma ressurreição.

Solange Maia

para Adriana Galvão e Rafael Dutra... meus professores de dança

sexta-feira, 22 de julho de 2016

da parede caiada...

A vontade dela era impotente.
Observava por horas infinitas o amor de sua vida, ali, tão quieto. O tempo, avassalador, havia enfraquecido o homem que um dia havia sido. Passava o tempo todo deitado, sem a avidez de outrora, mas ainda lindo, como sempre fora.
Era assim que Mary o via.
Com as lentes do amor.

No quarto, a parede branca era um abismo que sugava seu olhar. Na rotina dos dias ele parecia não se interessar por outra coisa. Angustiada por esta solidão de cal, olhava para o mesmo vazio que ele, procurando respostas. O que haveria ali? O que ele queria? Um pouco de paz? Ou teria uma vontade espremida na pálpebra? Mary não sabia.
Ainda não.
Mas estava determinada a descobrir.
E, embora estivesse muito cansada e com medo daquelas tardes que passavam arrastadas, e não traziam respostas, Mary tinha fé.
Por toda a vida soubera de seus quereres. Achava até que tinham as almas entrelaçadas há milhares de anos.

Então, olhou pera ele fixa e demoradamente, envolta por um silêncio profundo e solene. Sem que uma palavra sequer fosse pronunciada, ela soube o que fazer. Beijou suas mãos e saiu determinada. Dirigiu-se à despensa. Atrás das velhas fôrmas de pudim pode ver a caixa de madeira ocre. Tão usada. O mesmo perfume, cheia de memórias, de tintas e de pincéis. Abriu delicadamente a tampa, e retirou de dentro o vermelho mais rubro que pôde encontrar.
Com o espírito renovado, aproximou-se da cama e levantou os braços como se fosse dançar.
Não ia.
Ia pintar.

Mary pintou na parede branca um enorme coração.
Desfez-se imediatamente o branco abissal.
Voltou-se para ele e viu, finalmente, um sorriso desenhado no canto da sua boca.
Talvez um de seus últimos gestos.
Somos todos passageiros, ela sabia, menos o amor.

E, para quem quiser ver, ainda está lá, pintada na parede caiada a figura alegórica do amor.
O coração que, seja onde for, está sempre no lugar certo.

Solange Maia

da parede caiada...

A vontade dela era impotente.
Observava por horas infinitas o amor de sua vida, ali, tão quieto. O tempo, avassalador, havia enfraquecido o homem que um dia havia sido. Passava o tempo todo deitado, sem a avidez de outrora, mas ainda lindo, como sempre fora.
Era assim que Mary o via.
Com as lentes do amor.

No quarto, a parede branca era um abismo que sugava seu olhar. Na rotina dos dias ele parecia não se interessar por outra coisa. Angustiada por esta solidão de cal, olhava para o mesmo vazio que ele, procurando respostas. O que haveria ali? O que ele queria? Um pouco de paz? Ou teria uma vontade espremida na pálpebra? Mary não sabia.
Ainda não.
Mas estava determinada a descobrir.
E, embora estivesse muito cansada e com medo daquelas tardes que passavam arrastadas, e não traziam respostas, Mary tinha fé.
Por toda a vida soubera de seus quereres. Achava até que tinham as almas entrelaçadas há milhares de anos.

Então, olhou pera ele fixa e demoradamente, envolta por um silêncio profundo e solene. Sem que uma palavra sequer fosse pronunciada, ela soube o que fazer. Beijou suas mãos e saiu determinada. Dirigiu-se à despensa. Atrás das velhas fôrmas de pudim pode ver a caixa de madeira ocre. Tão usada. O mesmo perfume, cheia de memórias, de tintas e de pincéis. Abriu delicadamente a tampa, e retirou de dentro o vermelho mais rubro que pôde encontrar.
Com o espírito renovado, aproximou-se da cama e levantou os braços como se fosse dançar.
Não ia.
Ia pintar.

Mary pintou na parede branca um enorme coração.
Desfez-se imediatamente o branco abissal.
Voltou-se para ele e viu, finalmente, um sorriso desenhado no canto da sua boca.
Talvez um de seus últimos gestos.
Somos todos passageiros, ela sabia, menos o amor.

E, para quem quiser ver, ainda está lá, pintada na parede caiada a figura alegórica do amor.
O coração que, seja onde for, está sempre no lugar certo.

Solange Maia

quinta-feira, 14 de julho de 2016

o mistério era um buraco que a sugava...

Haverá sempre o inesperado.
Viver é um pouco isso.
Pisar num chão que nem sempre está lá.

A madrugada quente pintava de vermelho o rosto da gente naquele quintal.
Um falatório gostoso, o céu muito escuro e o cheiro do cuscuz tornavam aquela atmosfera ainda mais aconchegante.
Olhando profundamente nos olhos dela, e tornando o momento tão mais sério, ele afirma: - Não sei se você sabe, mas você já conhecia Maria. De outra existência.
Ela sabia.
Sabia sem saber explicar.
Maria tinha aqueles olhos que ela não esqueceria.
Talvez tivessem vivido mil vidas antes desta. Talvez tenham se encontrado em cada uma delas.

E isso podia significar tanta coisa que a madrugada quente tomou outro rumo. A partir daí, ela pensou em despedidas, em morte, em possíveis encontros, na ativação de portais invisíveis, e em outros mistérios que ainda não conhecia. Mas que intuía.
Talvez um ‘adeus’ fosse sempre um ‘até breve’. Achava mesmo que tudo tinha origem no mesmo infinito.

Atordoada, longe daquele instante, pensava em como mesmo tinha ido parar ali.
Esses arcanos do destino sempre a intrigaram, eram buracos negros onde ela mergulhava em busca de respostas que nunca vinham. Queria saber. Queria entender se existiam, ou não, coincidências. Eram muitas coisas entrelaçadas que, sem mágica, teriam uma chance ínfima de acontecer. Sabia que eram encontros importantes, e ela desejava tanto saber os porquês.
O mistério era um buraco que a sugava desde menina.

Domingou e ela ainda longe dali.
Voltou aos olhos dele e, imediatamente, ao velho quintal.
A fé devia ser isso, e pensou nas palavras que ele sempre repetia: uma aceitação, um mergulho.
Um mergulho no escuro.

Talvez ela até entendesse parte do milagre, mas, definitivamente, só parte dele.
Nesses mistérios, a única segurança está na dúvida.

Solange Maia

quinta-feira, 23 de junho de 2016

a melhor maneira de "deixar ir"...

Tinha uma carência insolúvel que a deixava muito cansada.
Até que um dia acordou com vontade de abandonar tudo o que lhe machucava.
Sem saber por onde começar pediu que eu escrevesse sobre o tema que não lha saía da cabeça, “deixar ir”.
Queria se desfazer de tudo o que não lhe cabia mais, e, achou que lendo sobre o assunto, teria um norte, usaria as palavras como guia.
 
Escreveria até, mas agora, perto dos 50 anos, já não sei se gosto de focar meus dias no que devo “deixar ir”.
Não há mais tempo a perder.
Os anos cobraram tributos altos por cada dia desperdiçado.
Gosto muito mais da ideia de “deixar vir”.
 
Então tenho permitido que a vida venha, com tudo o que tem para ofertar, sem industrializar a esperança ou investir em muita idealização, porque idealizar é, quase sempre, sofrer.
Faço do jeito mais simples, baixo a guarda, abro os braços, agradeço e acolho.
Deixar vir, talvez seja isso, deixar a armadura em casa e reconhecer que nem todos os dias, são dias de guerra.
Viver de peito aberto, rosto ao vento, pés descalços.
Porque ando desconfiada que deixar vir, de alguma forma, é a melhor maneira de deixar ir...
 
Mas faço isso sem ser seletiva, deixo que venha também tudo o que dói, os solavancos e os entremeios, porque quase posso jurar que não somos capazes de viver num mundo monocromático.
Já percebi que o que me machuca serve também de medida para o que me encanta.
Não tenho medo.
Afinal, a vida já me ensinou faz tempo, a transformar cárceres em capelas.
 
Solange Maia

quarta-feira, 25 de maio de 2016

na outra margem...

Ela finalmente fechou os olhos.
E isso representava tanto.
Permitiu-se.
Entregou-se àquela pequena euforia sem reservas.
Descobriu que a entrega precisava de sentido, de significado.
Só assim ficava vazia de medos.

Ia sendo conduzida pela água, o cabelo longo, disperso, deslizando enquanto desenhava espirais que pareciam redemoinhos minúsculos enfeitando a superfície.
Ele sabia que ela estava cansada de ser devorada pela tristeza e que precisava de um bom motivo para voltar a acreditar, então, sem saber o que fazer, cantou no ouvido dela. Não uma música inteira. Escolheu só as palavras pontuadas de afeição.
Ensinou-a a existir dentro dos gestos.
Aos poucos ela foi cedendo, os corpos amolecidos foram sendo atravessados por gemidos, sussurros e palavras sem bordas.

Em um par de minutos ela já queria ser perfume na pele dele.
E não estar mais alheia aos afetos.
Ele soube riscar um circulo na água em torno do corpo dela, e guardá-los ali.
Apresentou-a ao bom silêncio.
E ela finalmente fechou os olhos.

Ela ainda tinha sim, medo da quietude da água e de seus abismos, mas percebeu que na outra margem
o amor podia ser possível.

Solange Maia

(fotografia de Henri Cartier Bresson - ITALY - 1933)

quarta-feira, 4 de maio de 2016

hoje não quero aprender...

Concordo com o velho jargão de que temos que nos tornar, diariamente, pessoas melhores.
Viver é um passeio finito.
Não há tempo a perder.

Mas hoje, só por hoje, queria descansar nos meus erros.
Não aprenderia nada.
Seria só o que sou, livre da obrigação de estar o tempo todo alerta, de me esforçar para ser sempre alguém melhor.
Hoje eu bastaria, assim como sou.

Aceitaria o meu ‘não saber’ como órfão, um ‘não saber’ apenas, sem profundidade alguma.
Não me sentiria devendo nada para ninguém, não estaria aquém, não haveria falta.
Cuidadosa, claro, comigo e com os outros, sem ser leviana ou deliberadamente descuidada.
Só distraída. Leve. Livre.
Perdoaria fácil, e me sentiria perdoada.
Seria suficiente.

Afinal, reconhecer algumas limitações como características humanas, nos permite descansar nessa legitimidade.
E mais vale um erro a ser trabalhado, do que essa hipocrisia da bondade perene.
Cansada dos belos discursos dessa gente tão “evoluída".
Acreditam no próprio personagem, mas vivem sufocados por uma busca que não são capazes de resolver.

Errar nos convida a um exercício de humildade, muitas vezes nos dá nossa exata dimensão, e ainda nos faz conhecer o tamanho dos nossos vazios.
Ademais, errar, muitas vezes é só uma interpretação. Só um dos lados da moeda. Erros, de vez em quando, escondem acertos que só serão reconhecidos com o tempo.

Sim, temos que nos tornar, diariamente, pessoas melhores, mas desconfio que a melhora acontece é na lentidão das horas, na duração da vida.
Abreviar isso seria cometer um crime, acreditar numa mentira, abreviar a vida.

Desculpem-me os muito certinhos,
mas errar, de vez em quando, salva o mundo!

Solange Maia