sábado, 27 de outubro de 2018

ne me quitte pas...

 
O amor vinha sempre revestido de uma escolta de aspereza, eu sei.  Nem mesmo palavras escolhidas em compotas açucaradas conseguiam encobrir seu maior desejo: queria ser livre.
Livre e desobrigada das pessoas.
E a ideia do desprendimento era sempre tão tentadora que te fazia desejar viver distante.
Não gostava nem de interferências nem de opiniões.
Reservava para si seu recôndito em frente ao mar.

Você não sabe, mas eu torcia para que fosse mentira, só um capricho, uma teimosia.
Ficava imaginando que talvez tivesse havido um tempo em que você gostasse mais dos afetos e das presenças.
Mas de tanto repetir que amava sua independência só o que criou foi um distanciamento. Uma ausência.
E o tempo, impetuoso, decorre insensivelmente sem conceder chances de bis.
Passou.

E agora? Agora é como se houvesse um toque de recolher mudo: não se ouve, mas sabemos que está lá.
Talvez por isso os dias estejam nascendo mais escuros, cheios de horas vagas, cheios de vazios.
Encolho-me de frio. Sinto um cansaço tão grande que dá vontade de chorar.

Quando penso onde você está agora, tudo em mim desmorona.
Então fecho os olhos e te tiro dali.
É de novo aquela mulher linda. Segurando o microfone com os olhos fechados, num bar perto da praia.
Sua voz aveludada começa a canção: “Ne me quitte pas” ... Engulo em seco.
Finjo que não morro por dentro e torço para que o tempo lhe devolva o seu mar.
Acreditar é meu modo de tornar suportável o insuportável.

Solange Maia

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

o melhor tempero não é a fome...



A imagem pode conter: 1 pessoa, close-up
O pedaço de pão doce estava no mesmo lugar há 3 dias.
Pensei que não duraria mais um. Teria que descartá-lo. E nem era tão gostoso quanto parecia.
Mas ela soube fazer o pão doce ser só uma desculpa.
Sentou entre nós, com o prato no colo, o pão doce e 3 garfos.
- Vamos?
Entre risadas e conversas fomos comendo o pão velho que a cada garfada ficava mais gostoso.

Bebela é sempre essa surpresa. Aos 13 anos já sabe que quando você ama alguém, o melhor que pode oferecer é sua presença. E um pão velho.
Um pão que deixou de ser deserto.
Que foi habitado por aquela ternura tola e transformado em oásis.

A felicidade é feita dessas desimportâncias.
E quem disse que o melhor tempero é a fome?
É nada... o melhor tempero é o amor.

Solange Maia