quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

tudo que ela queria era o pai deste desenho...

Não foi o cinza do dia. Nem a garoa na vidraça.
Foi a conversa no meio da tarde que exigiu da menina muita coragem. Coragem interna, dessas que a gente precisa ter com a gente mesmo.
Porque era sempre a mesma coisa na hora de falar do pai: ficava em silêncio. Não conseguia.
Um silêncio que guardava uma dor antiga, sabíamos. 
E não era só pelo vazio físico, nem por aquela imensa ausência emocional, mas porque as pessoas desistem do que dói. E ela ficava aflita com isso.
Teve uma hora em que o distanciamento que era tão secretamente temido passou a ser desejado.
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Lembro-me de uma frase do Marcos Bulhões que dizia que “às vezes matamos o amor, mas em legítima defesa”. 
Pois é. 
Ela jamais desistiu do amor, era feita de afetos e de doçura. Desistiu foi de mantê-lo onde não era cuidado.
Fez bem.
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A figura do pai ausente acabou sendo a coisa mais presente que ele deixou.
Mas uma coisa é certa: ninguém escapa de olhar para trás e ver as escolhas que fez.
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A menina queria sim ter tido o pai deste desenho, mas tinha um tesouro ainda maior: olhava pra trás e podia sorrir ao ver as escolhas que fez.
Podia dormir em paz.
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Solange Maia
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(ilustração de Snezhana Soosh)

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

amanhã é segunda-feira e quero ser um pouquinho melhor...

Ontem a noite minha irmã caçula me mandou uma fotografia dela tomando vinho e comendo queijo derretido.
Sozinha.
Perguntei se estava tudo bem, afinal estamos atravessando um momento muito difícil.
Ela respondeu:
- Não quero ser engolida por esta fase. Não quero dar o braço para a tristeza. Pretendo viver a vida da melhor maneira que eu puder.
Engoli seco e fiquei silenciosa.

Sou totalmente passional, em mim todas as células do corpo encolhem diante da dor. Às vezes demoro muito a sarar.
Mas ela estava absolutamente certa.
Sei que nossa mente investe 70% do seu tempo reproduzindo memórias, voltando a passados e criando cenários de “momentos perfeitos” que geram expectativas muito, muito perigosas. Tento driblar isso o tempo todo, afinal, sei também que a gente pode, e deve, “administrar” esses pensamentos.
Sei que as alegrias moram nas ‘pequenices’, e que a felicidade não pode ser uma meta.
Ela é caminho.
E está disponível o tempo todo.

Essa semana foi dura, muito dura, mas as alegrias estavam lá: conheci a ascensorista mais doce do mundo cuidando do elevador lotado do hospital, dormi todas as noites com as pernas entrelaçadas às do meu amor, passei horas com minha irmã do meio, que está doente, inventando um jeito de levar alegrias a uma sala de quimioterapia, estive perto de amigos muito queridos, fui a uma festa surpresa, senti o cheiro de uma bebê linda, vi uma dor desaparecer em 10 minutos, comi panquequinhas chinesas duas horas depois de achar que o mundo estava acabando, tomei chuva, muita chuva, e fiquei deliciosamente encharcada, li mensagens tão amorosas por aqui, achei graça ao constatar que minha filha já usa todos os meus sapatos, achei meu pai lindo de cabelo cortado, sorri ao ver minha mãe bordando com minha irmã camisetas de cura, meu amor fez um jantar pra mim, ganhamos cupcakes e pastel de feira, sentei na guia de uma rua arborizada e chorei no colo da minha irmã...
Conto então, as minhas bênçãos.
E percebo que tem horas que a gente precisa relaxar, 
precisa se desligar um pouco.

Amanhã é segunda-feira e quero ser um pouquinho melhor.

Solange Maia
(escrito em abril.2017)
fotografia "Eu e Bia" - minha irmã do meio

quando todos podemos ser Julia...

Julia já nem sai mais de casa.
Tão machucada, prefere ficar só.
Escondida da vida pensa estar se protegendo dos sofrimentos, mas não. Só o que faz é substituir uma dor por outra.
O peito dói. A solidão devora o tempo. Não há folga.
Já sem energia e muito cansada para buscar soluções novas.

De vez em quando chega a acreditar que não merece algo melhor.
Aceita e se resigna.
E cada vez se fecha mais.

Tem dias em que ela volta às coisas que já viveu e sente uma saudade imensa.
Julia quer de volta a sua vida. Seu sorriso solto, a vontade de namorar, os passeios pela orla, os filminhos do fim de semana, jantar com amigos...
Ela se deu conta de como são grandes as coisas pequenas!

Solange Maia

* - * - * - * - * - *

Julia que tantas vezes fui eu.
Julia que pode ser João. Que pode ser você.

DEPRESSÃO não é tristeza, ‘fase ruim’ ou mi-mi-mi, e não são só os adultos que passam por isso. Esta é uma dor cada vez mais comum, que deve ser tratada por profissionais.

Como uma das idealizadoras do lindo projeto “Nossos Doutores”, te estendo as mãos e te convido a encontrar ajuda.
Vem comigo! Fale-me o seu CEP e vou apresentar um profissional que vai te atender em seu consultório, pertinho de você e por um preço que cabe no seu bolso.
As dores emocionais são invisíveis, mas só a gente sabe o quanto ferem!

Encontre você mesmo: www.nossosdoutores.com.br

Seu PSICÓLOGO, médico, dentista, fonoaudiólogo, nutricionista e fisioterapeuta em + de 90 bairros de SÃO PAULO (e, em breve, em outros estados).

terça-feira, 7 de novembro de 2017

Como medir a morte? Medindo a vida!

Em dois minutos estava acolhida em meu peito, quietinha.
Cabelos cheirosos e a pele feita de delicadezas como só as meninas daquela idade têm.
Tínhamos um pequeno deserto a atravessar, mas houve tempo para que ela escolhesse begônias. Vermelhas.
Escolheu as flores intuitivamente, sem que soubesse que representam lealdade e afeto.

O domingo amanheceu ensolarado e frio, o lugar era singelo e não havia nada por toda parte, no entanto a ausência da mãe preenchia tudo. A morte sempre me faz pensar. Sua irreversibilidade é perturbadora.
Mas ali, com a pequena, seu pai, uma antiga professora e nós dois, só o que vinha à minha cabeça era a vida.
Era a vida que devíamos contabilizar.

Percebo que tiveram grandes momentos, fizeram bons amigos, deram e tiveram colo, encontros surpreendentes, família à mesa, confessaram segredos, descobriram coisas juntas e, com certeza, riram a beça! Esta era a mãe da menina, a mãe da qual ela jamais vai partir.
Peço a Deus, portanto, que os pensamentos dela guardem essas alegrias, e que, quase nunca, quase nunca mesmo, ela pense na vida potencialmente perdida.

A despedida é sempre dura, eu sei, mas que tenhamos sabedoria para perceber que ela é somente uma camada externa dolorida, mas muito fina, que recobre temporariamente toda a imensidão de vida que houve por trás daqueles poucos instantes como os que vivemos hoje cedo.
Às vezes, a vida pode estar reduzida em relação ao que esperamos em termo de longevidade, mas como dizia Ronaldo Cunha Lima, “ela deve ser medida pela largura, nunca pelo comprimento”.

Ainda em silêncio demos as mãos e deixamos a morte de lado. O que celebramos ali, com as begônias vermelhas, foi a vida. A vida que ela teve, e a que a pequena menina ainda terá!
Sussurrei no ouvido dela que desejos de mãe são sagrados e que tem muita força.
Ela sorriu e entendeu que tudo o que a mãe desejaria é que ela sentisse que a vida começava mais uma vez ali, exatamente naquele momento.

E que, certamente, ela será uma menina muito, muito feliz.

Solange Maia

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

não preciso mais...

50 anos e começo a sentir preguiça de gente que rebusca as palavras.
Fazem-me lembrar de um professor de Penal: embora mestre em eloquência e em brocardos jurídicos, seu estado era sempre o mesmo: in absentia. Toc-toc? Não adiantava, não tinha ninguém.
Bons em discursos e em conversas solenes. Polidos, vaidosos, gostam mesmo é de se sentir ‘engajados’ nesta ou naquela causa. Falam, falam, falam. Sentem-se grandiosos, mas só o que vejo é um enorme vazio.
Estranhamente aprendo o silêncio com eles.
Minha alma quer ter tempo de olhar para o céu.

Ando querendo despir camadas e mais camadas.
Quero o que tem lá dentro.
Quero ‘desprecisar’.
Desprender.
Ter a coragem da nudez constante.

Quero fazer como contou Manoel de Barros:
tirar a roupa de manhã e acender o mar...

Palavras bonitas? Fico nua delas também.
Estou mais gesto.

Solange Maia

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

da minha infância...

É isso mesmo, Bebela e Clarissa estão na praia comendo coxinha!
Coxinha moderna: vem em caixinha de papelão!

Deixo escapar um sorriso nostálgico e lembro-me da praia da minha infância: D Nelcina (linda, pequenininha, o cabelo grisalho emoldurando o rosto negro e o sorriso de poucos dentes) vendia cocada branca num tabuleiro e cocada queimada no outro. Eram feitas no tacho, bem cedo, e ela as carregava até não restar nenhuma. Tinha também o Tio do sorvete de groselha, era vermelho só por 3 minutos, depois restava apenas o gelo branquinho no palito...

A praia tinha caramujos, muitos. E conchas enormes pela manhã. E peixes que nadavam ao nosso lado. Tinha água-viva e tinha siri. A areia quente queimava nossos pés e nossos ombros. A gente descascava!
E ralávamos o joelho, arrancávamos o tampo do dedão, e pisávamos em pregos enferrujados. Uns petelecos de vez em quando, mas todos, todos vivos no fim das contas. 

Soltávamos pipas feitas no final da tarde, fazíamos bolhas de sabão com caule de mamona, jogávamos taco e fazíamos telefone sem fio com latas e barbantes! Tomávamos banho de mangueira e comíamos bolinho de chuva. A gente nem sabia que existia colesterol!
As crianças eram como eram.
Não importava de onde vinham ou o que tinham. 
Tamanco de madeira, chinelos de borracha ou pés na areia. Éramos todos iguais.

E, juro, era tão mais fácil ser feliz!
Tão mais fácil...

Solange Maia

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

não queremos mais subir nos pódios...

Aprendemos a rir, falar, gesticular.
Aprendemos o corpo que devemos ter e as roupas que devemos usar. Então, o que fazer quando percebemos que não nos encaixamos mais nesses padrões?
Olho pra mim e vejo uma barriguinha redonda, suave. Os quadris bem mais largos, risadas sonoras, gestos amplos, menos filtros. Muito menos.
É assim que é. É assim que somos.
Para gente de olhos doces isto nos faz acolhedores, naturais, de verdade. Para os mais afoitos, isto nos exclui dos padrões.

Mas chega um tempo em que não queremos mais subir nos pódios, queremos só ternura, amores para pertencermos e algum lugar para descansar.

Já houve o tempo dos que estavam com “tudo em cima”, da perfeição festejada, do instante.
Mas agora que conhecemos a transitoriedade da perfeição, sabemos que ela tem data para acabar.
E passamos a querer as eternidades.
Quem já percorreu boa parte do caminho sabe que o tempo não poupa ninguém.

Esta beleza padrão, aprendida e esperada, é uma imagem bastante sabida, mas pouco nítida.
Temos vontade de ver as marcas deixadas pela vida. É a assimetria de nossos contornos que nos valida, os efeitos da gravidade que nos fazem reais e tão parecidos. Ah, sim, nossas deliciosas imperfeições são nossas assinaturas, a prova viva dos nossos caminhos.

E não pensem que nos falta apetite.
Nesta altura nos permitimos estar alheios às regras, sobretudo a das decências.
Amamos imaginar. Nossos pés nus bastam como insinuação à outra nudez.
Despir já não assusta e não há mais pressa, nenhuma.
Sabemos que imaginar é estender o prazer.
Desejamos devorar o amor.
Desejamos ser felizes.
Afinal, padrão é só um ponto de vista.
Só um lado da moeda.

Solange Maia


* fotografia de Chico Batata

quarta-feira, 19 de julho de 2017

para que não tenhamos preguiça de acontecer...

Podia ser dia, verão, ventania. A menina tinha sempre uma vela acesa nas mãos.
Sabia que para algumas pessoas os dias iam embora mais cedo: encolhidos ou endurecidos.
E tinha medo que esse tipo de abreviação nunca terminasse.
Então, daquela forma, pensava acender os caminhos. Queria não deixar nunca que o dia se apagasse.
A vida se apagasse.
Conhecia bem os caminhos de pedra que afastavam as pessoas do que tanto lhes faz bem.
Conhecia bem as pessoas de pedra que evitavam os caminhos que tanto podiam lhes fazer bem.
Aguardavam em seus esconderijos internos que a vida consertasse o que fez.
E alimentavam assim, a potência paralisante dos que não têm pressa. Viveriam amanhã.
Mas a menina entendia que o tempo não era feito para nos consolar. Queria ser vivido.
Hoje.
Tudo o que podia fazer era trazer uma vela acesa nas mãos e orquídeas escondidas no bolso.
E não parar de tentar acelerar sua ressurreição.
Ela amava as pessoas.  
E sabia que as demonstrações de amor podiam consertar o mundo.

Solange Maia

domingo, 16 de julho de 2017

difícil é ver alguém respeitar tristeza...

Difícil é ver alguém respeitar tristeza.
Muito mais difícil é ver uma tristeza sendo acolhida.
Já uma perna quebrada, um hematoma, um mal estar, estão ali, tudo posto, visível, compreensível e facilmente respeitável.
Tristeza não.
Tristeza é sutil.
Costuma ser confundida com frescura, fraqueza, TPM ou mimimi. E é sempre considerada passageira.
Não é.
As vezes a tristeza é o piloto. É perene, crônica.
E, acredito, só sara no amor.
Nesse, que as vezes a gente economiza com medo que acabe.
Mas não. De novo não.
Amor não acaba, ele sabe se multiplicar.
Dalva estava triste.
Uma tristeza pungente, já sem origem, cotidiana. Estava dolorida. Parecia por fora, mas era por dentro que doía mais. Mas quase ninguém via.
Precisava ser ouvida.
E urgentemente abraçada.

Foi o que fizemos... ontem, um pouco depois das nove. Dez adultos abraçando Dalva.
Ela sorriu. E chorou.
E sentiu-se muito melhor.
Foi embora tão grata, fazendo mesuras com as mãos.
O que talvez ela nunca saiba é que era eu sendo curada naquele abraço também.

Solange Maia

anoto o gosto...

Cada coisa que me acontece, anoto o gosto.
Não no sentido químico, é claro, mas de uma forma diferente.
É que tenho um pequeno diário dentro de mim onde guardo o sabor de alguns momentos que considero sagrados.
É lá que as coisas que amo se acumulam.
Essa semana foi assim: olhei para Bebela e senti as primeiras notas adocicadas de quem já está virando uma mulher.
Num átimo de instante estava tudo ali, minha pequena bebê falante, a menininha do pé preto, e uma mocinha linda. Todas moram nela.
Anotei esses muitos sabores e suspirei demoradamente.
É que são tantos os açúcares contidos nela...

Solange Maia

sexta-feira, 5 de maio de 2017

pra comer de colherzinha...

Na Rua Comte Félix Gastaldi, no condado de Mônaco, existe um restaurante que serve massas tão delicadas, que envolvidas por nata, ricota e basílico vêm à mesa de um jeito diferente: ao lado do prato somente talheres de sobremesa, sim, aqueles menores. Nada de garfos comuns.
Fazem assim para que a gente coma aos bocadinhos. Para que possamos degustar cada mínima nuance do sabor, da temperatura e da textura. Lá eles fazem com que o caminho entre o talher e o estômago passe pelo coração. É uma experiência que não se esquece jamais.

Porque eles sabem que comer é uma coisa, e degustar é outra.
Degustar faz você se emocionar. Transcende o ato.
Assim como sabemos que o amor que é uma coisa, e sexo é outra.
No amor prolonga-se o prazer para que o perfume do outro demore dentro da gente.

E, nos dois casos, a satisfação está no tempo que se demora, não no que se arrasta.
No saborear sem pressa e atento, para que se recolha o prazer na boca, mas não o derreta.
Para que o resultado compense o tempo dispensado no preparo...
Na feitura é necessário vigor, nunca força.
As vezes é preciso  diminuir a tensão, nunca afrouxar.
Bons temperos, mas sem exageros. 
Afinal, queremos nos sentir saciados, nunca extenuados.

Comer e amar são delícias permeadas de mistérios.
Nossos olhos precisam, sempre, enxergar uma promessa.
E, tanto um quanto o outro, sendo bem feitos, 
são para se comer de colherzinha...

Solange Maia

quinta-feira, 13 de abril de 2017

biscoito de farinha aos 50 anos...

Quando era menina brincava de imaginar como seria minha vida adulta.
Como estaria aos 18, aos 25, aos 30?

Mas o primeiro grande marco foi o ano 2000. Era um número impactante, convenhamos. Eu teria 33 anos. Imaginava um cenário perfeito e uma vida adulta consolidada. Não aconteceu. Vivi nessa fase um dos meus maiores reveses.

Tiveram outras datas. E outras surpresas. Não dei uma bola dentro! Mas, mesmo diante dos obstáculos, a vida foi encantadora sempre. E generosa.

Hoje faço 50 anos, e, evidentemente esta também foi uma data imaginada, lá na infância e outras vezes no princípio da vida adulta. Meio século. É engraçado. É muita vida.

De tudo o que vivi o que mais me define talvez sejam 2 coisas: sei contar minhas bênçãos... e amo a vida com força.
Agradeço por tantas experiências, por tantos amigos, por minha filha linda, pelo meu amor, por tantos lugares, cores e cheiros. Agradeço por minha família, por minha cabeça sempre aberta, por caberem tantas coisas em mim, por meu desejo que não cessa, por sentir demasiadamente e por amar o amor.

Hoje, mais uma vez, a vida está bem diferente de como imaginei que estaria.
Conto minhas bênçãos logo ao acordar, e agradeço, mas meu coração aperta.
Não tenho tido dias fáceis.

A primeira coisa que vem à minha cabeça é uma carta que Henfil escreveu à sua mãe um dia antes do meu aniversário de 38 anos. Seu irmão estava exilado, ele agoniado... e a carta dizia assim: “Não suporto mais a saudade sufocante do meu irmão Betinho. (...) Perdoa, mãe, mas biscoito de farinha só é gostoso se mastigado olhando nos olhos do irmão que sente na mesma hora a mesma delícia.”.

É assim que estou, querendo comer biscoito de farinha com minha irmã. Como se estes últimos dias nunca tivessem existido. Como se os que virão também não.
Afinal, é verdade, tenho meio século, mas a vida tem mistérios que ainda não aprendi a entender...

Solange Maia

Ana Beatriz Maia, bora viver mais uns 50, né, mana?

ela sabe tudo do amor...




Ela me deu um pastel de queijo.
E uma surpresa: em meio ao caos conseguiu reunir meus pais e, de uma forma tão doce e criativa, minhas 2 irmãs (elas ao telefone). Colocou sobre a mesa da sala o bolo, já aberto e de antes de ontem, de limão siciliano. As velas, com os números 1 e 2, haviam sido usadas no seu aniversário. Finalizou com um bilhete lindo. Exatamente como sabe que eu amo.

Ela me deu TUDO, sem precisar de quase 'NADA".
Tão nova e já entende do amor e de seu desprendimento.
É, ela me deu um pastel de queijo.
E, mais uma vez, fez meu coração transbordar.

Solange Maia

quinta-feira, 30 de março de 2017

dessas Deusas sem cabelo...

para minha irmã Bia

A menina, muito pequenina, era guardiã de um segredo.
Mas há muito tempo não se sabia dela.
Até aquela tarde.
Costumo dizer que a aridez dos desertos parece convidar aos milagres.
E que os Deuses agem nas sutilezas, quase sempre em silêncio.

A primeira tesourada foi acre. Nada parecia justo.
Cortes secos, marciais. Linhas retas.
As mechas longas no chão pareciam querer ensinar àquela mulher o que ela já sabia: a vida tem suas próprias leis.
Ainda faltava um sentido, precisava entender os propósitos.
Engoliu seco, baixou a cabeça e chorou.

Até que, buscando encher os pulmões de ar e de vida, levantou a cabeça mais uma vez.
Foi neste exato instante que o milagre aconteceu.
Era a menina, muito pequenina, que olhava para ela no espelho a sua frente, vinda lá da infância, com seus olhos doces, lembrando-a de coragens ancestrais e mostrando a ela que seu grande patrimônio era a vida.
Demorou o olhar nela mesma. Sorriu. A partir daí, quanto mais os cabelos caiam no chão, mais leve ela se sentia. Seu corpo, agora, parecia envolvido por uma espiral de luz.
Sentiu-se majestosa. Percebeu-se incansável.
Estava pronta.
Podia ser, a qualquer momento, mais uma dessas Deusas sem cabelo...

Solange Maia

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

duas formas de oração...

A vela é só um modo de tornar visível a nossa fé. sabemos que Deus está ali, e independe dela. Mas, de vez em quando, a gente precisa "ver" a oração.

Assim como a mulher muda a cor dos cabelos.

O que menos importa ali é o tom ou o comprimento. Aquela mulher quer dizer alguma coisa. E, naquele instante, como se assim fortalecesse o que vem construindo por dentro, ela precisa "ver" sua transformação. Qualquer que seja ela.
E, assim, reproduz exatamente o mesmo gesto da vela.
Muda o cabelo,
mas só o que quer é enxergar a sua oração.

Solange Maia


quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

só uma mulher sabe...

Há um trançar metafísico, onde quer que eu vá.
E, cada vez que tentar definir alguma coisa, vou perdê-la num resumo tolo.
Nem tudo carece de significado.
Trançar é para sentir.
Não para entender.

Será que só uma mulher sabe salvar a outra ? Trançam seus cabelos num ciclo interminável de afeto e vagareza.
Só para estarem presentes, sem precisar de longas explicações.
Mãos seculares separando mechas, levando-as de um lado ao outro, sem precisar de razões. O tempo envelhece lentamente enquanto elas ouvem e contam histórias, enquanto acolhem solidões e aplacam dias em que não queriam existir.
Mãos ungindo cabeças, conferindo-lhes de volta dignidades perdidas, consagrando o fato de serem mulheres, parideiras, companheiras, complexas, amplas, agridoces. Até mesmo em tempos exaustos cheiram a gengibre e a caramelo.
Trançam sem descanso.
Morrem um pouco.
Depois renascem.

Trançam hoje, para fazê-lo de novo amanhã. Para lembrar que o amor existe.
Trançam porque sabem que o vento e o tempo as desfarão.

A vida segue o rumo que pode.
Sem permanências.
Mulheres sabem: sempre haverá tranças por fazer.

Solange Maia

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

não vale a pena...

Acho a arrogância um estado solitário.
Custo a entender porque tanta gente precisa desse subterfúgio.
Pra mim a soberba é sempre uma denúncia, é feita de uma nobreza que não chega. Tem urgência, tem pressa, não sabe ficar. E nem conseguiria, afinal, nela a verdade nunca vem.

A arrogância é cheia de uma fragilidade que não se esconde, de uma demência, uma ausência.
Um modo tolo de atribuir a si um poder que não se tem.
É prerrogativa de gente que julga que, por ter certa superioridade, seja hierárquica, intelectual ou econômica, merece mais.
A arrogância um estado vazio.

E dura pouco, garanto, afinal é um estado vítreo de estrutura sólida desordenada. Se você observar bem o arrogante está lá, mas sempre, sem estar.

Solange Maia

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

de algumas fragilidades...

A menina era forte, sabida e muito corajosa.
Mas acordou um dia sentindo medo da solidão.
Não era medo de escuro ou de fantasmas, embora às vezes os confundisse.
O medo que sentia era abstrato, muito mais uma sensação.

Sabia que a solidão era uma coisa diferente de estar sozinha.
Ela não estava.
Mas sentia um buraquinho, um vazio, um vento gelado por dentro. E quase ninguém via... é que muita gente não percebe pedidos de socorro.

Rezava para que não acontecesse, mas ele vinha.
Era um velho conhecido, antigo mesmo, desses que sentam sempre na mesma velha poltrona.
E o medo sussurrava uma voz de mulher: estou indo embora, e não vou voltar.
Então, só o que restava era a solidão. Bem grandona.

A menina ficava triste porque sabia que tudo isso só acontecia dentro dela.
Não contava para ninguém, mas sabia mais 2 coisas: que o medo era sua alma pedindo algo, e que tudo isso ia passar.
Só não sabia ainda o que era...
Nem quando.

Solange Maia

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

carta para Bia...

Chegou, mana.

Amanhã você vai dar um passo tão importante que jamais se esquecerá. Vai enfrentar, como já tem feito, uma “dor” que não devia existir, um problema que não foi merecido, que não é justo, mas que está lá. Está lá porque a vida é assim, porque às vezes nos põe à prova, nos leva ao limite, nos apresenta de novo para nós mesmos.
E a gente descobre coragens e forças que nem sabíamos possuir. E se respeita ainda mais.
E nasce de novo. Mais forte e, paradoxalmente, mais suave.

Não tente encontrar explicação. Não há.
O que vai encontrar é outro tipo de riqueza: são estes anjos que a tem acompanhado, esses encontros mágicos, esta lista de milagres que construiu e que tem compartilhado com quem ama.
E mais, o principal, terá muito, muito, muito respeito pela vida.

Amanhã, se tiver um tempo, deitada no hospital, pense em Chiang Mai.
Chiang Mai naquelas noites em que milhares de pessoas levam suas lanternas iluminadas para a beira d’água. São noites de muito amor e alegria. Pense na sensação de estar vendo a sua lanterna subindo, se juntando às lanternas das outras pessoas, até que sumam no céu. É um momento mágico em que você percebe que sua lanterna é única e importante, mas que faz parte de um todo, e que juntos iluminam todo o céu, tornando o lugar ainda mais bonito... ou seja, é a sua luz individual fazendo parte do coletivo universal...

Amanhã estaremos assim, Bia, cada um dos seus amigos e dos seus amores com sua lanterna, nos lugares mais diferentes, te enviando a melhor de nossas energias, e faremos tanta luz, tanta, que no instante em que estiver sendo operada haverá um céu iluminado e lotado de amor.

Em Chiang Mai comemora-se a vida, o amor e a gratidão.
No Sírio Libanês também.
Prometo um dia te levar lá...
Te amo. Vai com Deus e volta logo.
Estou te esperando.

Soli

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

fome é outra coisa...

Quando ele cozinhava, era imagem icônica, quase esfinge.
Algumas vezes era ele mesmo, em outras não era ninguém.
Seu compromisso nunca havia sido com a nutrição, era o desejo que o seduzia.
Nada acrescentava sem antes envolver no côncavo de suas mãos. Precisava sentir a textura, a forma, a temperatura.
Era um alquimista sensorial. Fazia de seu ofício um despertar de sensações.

Depurava, reduzia, misturava. Ultrapassava o paladar.
Sua pretensão era provocar espasmos, encantamentos, fragmentar a respiração, parar o tempo.
Sabia que o segredo era avivar os sentidos. Devolver prazeres tão esquecidos.
Aplacar a fome era consequência.
Todas elas.

Pertencia às pessoas e precisava quase nada além disso.
Era bruxo, holístico, e cozinhar era sempre encurtar o caminho até o outro.
Longe de ser cartesiano, fazia do seu ofício sempre uma presença inefável.

Aprendera faz tempo que vontade de comer se mata fácil, com a boca.
Mas não satisfaz.
Não a ele.
O negócio dele era satisfazer a fome.
E fome, fome é algo bem maior...

Solange Maia

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

palavras doces não ditas...

Palavras de ordem me causam desinteresse.
Pessoas que acham que pequenas feridas não doem, também.
Porque as vezes fica tudo entalado na garganta, num nó que não nos deixa nem falar.
Há uma crença de que teremos sempre tempo para dizer as palavras doces não ditas.
Até que a gente descobre que não tem.
E só então percebe que somos todos passageiros.

Solange Maia