Celeste não parava de falar. Ficava
assim quando estava nervosa.
Pendurada no galho mais alto daquela árvore
decidiu que não mais.
Não iria mais saltar. Não queria cair.
Nem sentir vertigens. Nunca, nunca mais.
Ela, a melhor saltadora da cidade, abriu
mão de continuar sendo.
Sentiu medo ao perceber que estava suspensa
no ar. Abandonou a árvore.
E assim, as próprias dores.
E, quase sem notar, abandonou a si própria.
Certa de estar finalmente longe de
qualquer perigo, Celeste relaxou. Seguiu a vida sem nunca mais subir em árvores.
Nem ligava para a ausência da vista espetacular que tinha lá de cima, nem do
contato com os pássaros que lá se abrigavam ao final da tarde, ou ao vento que
lhe desorganizava deliciosamente os cabelos. Celeste não ligava. Não mais. Tinha
feito sua escolha. Queria estar num lugar seguro.
20 anos passaram.
Celeste nem lembrava
mais que sabor tinha o medo. Nem tampouco a coragem. Nem o sabor de coisa
alguma. Tinha partido dela mesma, mas agarrava-se à idéia de que finalmente
vivia uma vida serena. Repetia a todo instante que o que importava era a paz,
não a felicidade.
Num belo dia, Celeste caminhando pela cidade, percebeu que falavam dela. Falavam que havia sido uma criança muito bonita, e que atualmente sua palidez escondia qualquer traço do que havia sido. Falavam cheios de interrogações sobre o que poderia ter acontecido. Falavam que antes, embora quase
sempre toda esfolada, Celeste tinha cor. E sorria. E era muito mais bonita.
Naquele instante ela se deu conta de que no fundo nunca havia aceitado aquela
sentença. Nunca havia, de fato, percebido tal palidez. Silenciou, ficou muito magoada, e ainda mais pálida. Celeste, resignada, soube naquele instante que não queria mais. Lembrou que a vida pedia coragem.
E sentiu uma saudade lancinante de quem já havia sido
um dia.
Sim, cair da árvore podia doer.
A vida também podia doer.
Mas Celeste estava cansada demais para continuar.
Cansada demais para não chorar.
Cansada demais para nada fazer.
E, finalmente, desabou.
Caminhou sozinha até a árvore do seu
passado, exausta, o corpo todo doendo, tanto tempo, tanto tempo... talvez lhe doesse agora uma vida inteira, uma ausência densa, uma apatia fosca. Talvez fosse só o fim de um ciclo, talvez o tempo de 'desgarrar'. Ela pensava, pensava... talvez fosse medo.
Sim, talvez fosse só isso : medo.
E medo pertence ao território das ideias, não dos fatos.
Sem saber ao certo como, Celeste se decidiu.
Deu um 'fuck off' à tudo e agarrou o galho mais próximo. As mãos firmes. Tirou os pés do chão.
Entregou-se.
Soube naquele instante que não dava pra voltar atrás.
Entregar-se doía menos do que não viver.
Bem menos.
E Celeste subiu.
De novo pendurada no galho mais
alto daquela árvore, percebeu que talvez seu medo tivesse a medida da sua coragem. Talvez menos.
Bem menos.
E fez o que melhor sabia fazer.
Saltou.
Foi no meio do salto, ainda no ar, que percebeu, surpreendentemente, que a vida lhe saltava de volta.
Finalmente.
Era isso !
A vida lhe saltava de volta.
Celeste e a vida ali, mergulhando mais uma vez...
uma na outra.
Solange Maia