quarta-feira, 25 de junho de 2014

cento e vinte e sete beijos...

A luz obliqua suavizava a noite sem perder seus amarelos.
Uma formalidade preguiçosa.   
A mesa posta, embora eu tivesse sentido vontade de cantar Chico: ‘ponha os pratos no chão e o chão ta posto’... é que ainda não te contei, mas gosto tanto desses cenários que nos aproximam. Terno como a água que me serviu em cristais. Delicadezas deixam a atmosfera tão leve.

Contamos histórias que tinham vontade de continuar, mas não, ficamos quietos, presos um no outro, num discurso de palavras mudas e poucos gestos. Era como se o ar precisasse ser preenchido, como se você precisasse ser preenchido.
Um instante afável, como se eu já o tivesse vivido, mesmo sem nunca ter passado por ali.

Tuas mãos no meu rosto branco eram boca.
Tua boca no meu corpo tonto era beco.
Fui embora devagar, como quem nunca quer partir.
E acordei cedo, com vontade de te beijar.
Cento e vinte e sete beijos. Tantos.

Solange Maia

domingo, 22 de junho de 2014

a festa que ninguém foi...

Não gosto dessas deserções, a sensação era a de estar numa festa que ninguém foi, tudo parecendo caminhar em câmera lenta junto comigo, minha respiração suspensa, pausada, procurando qualquer fio de lógica onde pudesse me agarrar.
A dor, nessas horas, é visita que não se anuncia.
Eu fui. Ele não.
Mais uma vez lembro que sou um hibrido de força e fragilidade. Teimosa, nunca aceito morrer.

Devia ter percebido, o amor estava enfeitado demais.
E ainda me confundo com essa gente que alimenta relações desde que não afetem seu cotidiano imediato, ainda acho que serão atravessados por uma flecha, que vão se render, morder a maçã.
A vida não é uma resposta, eu sei, mas torço para que eu consiga entender mais rápido quem é quem.

Cansada dessa gente cuja maior preocupação é a de assegurar uma ideia construtiva acerca deles próprios.
Procuram companhia, mas só entregam solidão.
Para eles o amor não chega nunca.
Como aquela festa vazia em que eu fui.
Ele não.

Solange Maia

quinta-feira, 12 de junho de 2014

só um dia para os namorados ?

Sentimentos não se quantificam e não podem ser elencados em listas.
Embora eu as faça.
Listo todas as coisas boas que sinto quando estou ao teu lado. Cada minuto é o milagre que pedi.

E nem foi preciso Verona.
Dispensamos o anel e as cenas na varanda. Até mesmo o vinho foi redundante. Nossa embriaguez era a do amor, a dos devaneios, dos excessos. Shakespeare também achava o amor a mais discreta das loucuras.

Temos tudo o que o nosso coração conquista, a cada dia. 
E é tanto. E pouco também. Por isso ainda faço como antes, guardo você.
Decoro tuas frases, desenho teus sorrisos, toco suas canções. Embrulho com laço de fita esses sentimentos todos, só para abri-los de novo mais tarde.
É que o tempo nunca é suficiente pra nós.

Talvez por isso tenhamos casado secretamente.
Assim, de camiseta surrada e pés descalços, bem ali, no jardim dos amantes. Tentando a todo instante enganar o tempo.

Solange Maia 

terça-feira, 10 de junho de 2014

meu pecado mais bonito...

Ele tinha aquele abraço.
Mas era menino, menino. Tão lindo, e tão safo.
De aconchego fácil, sem pose, sem esforço e sem fingimento.
Com ele o amor se dava e se pegava de volta na mesma hora.

Mas de tudo, o que mais gostava, era que ele amava as belezas disponíveis e não inventava amanhãs.
Devolvia-me todas as palavras esquecidas de ternura.
Um romance doce com sabor de fruta do mato.
Com ele o mundo parece sempre o lugar perfeito para se estar, e tudo é tão mais leve e mais alegre que o sexo é sempre uma recompensa, nunca uma absolvição...

Sorrio e solto um suspiro pesado, cheio de vontade de contar pra ele do vazio que sempre sinto nos dias seguintes. 
Não falo nada. 
Ele percebe. 
Chega bem perto, me beija e sussurra em meu ouvido :
- Não fica assim, não... afinal, o que é a vida senão um dia ?

Solange Maia

domingo, 8 de junho de 2014

boa de cama...

Gabava-se aos sete ventos que era boa de cama.
Eu, recém-saída da adolescência, imaginava-a pendurada no lustre, só podia.
Mas o tempo, generoso que é, mesmo sem pedir licença, me colocou contra a parede. Fui viver minhas histórias.

Aprendi que a linguagem dos corpos habita um terreno misterioso, e que para funcionar sexualmente é preciso atitude. É preciso estar despido de pudores para permitir que a ocitocina invada nossa corrente sanguínea e confunda nossos neurônios. Nessas horas perder-se é achar-se.
De resto, não há receitas.

Sorte de quem, como eu, descobriu como transformar o corpo (muitas vezes longe de ser perfeito) num delicioso parque de diversões.
No sexo, gosto do amor.
E no amor, gosto do que excede, invade, avança, dessa matéria intangível moldada a quatro mãos, das sensações embriagantes que me deixam sempre com vontade de querer mais. Viro verbo conjugado no corpo do outro.

Se sou boa de cama ? Não sei.
Só sei que no amor meu corpo entende tão bem o corpo do outro, que diante de qualquer mínimo estimulo o resultado é sempre sexy, erótico, envolvente e visceral.
É.
Sexo sublime também merece ser valorizado.
Pendurados, ou não, no lustre !

Solange Maia


segunda-feira, 2 de junho de 2014

o desenrolar da vida...

Preciso deles. Dias de descanso me fazem lembrar quem sou.
Passeio pela casa e me sinto salva quando vejo que ainda guardo meus livros separados por cor.
Que a ordem é o movimento cadenciado da desordem.
Que é só descalça que me sinto importante.

Sou hemisfério direito, feito costureira de colcha de retalhos, conto histórias bordadas no tempo, alinhavo sentimentos, componho um jardim intuitivo de flores.
Ou não. 
Preciso de pausas.
A vida se desenrola aos poucos, já sei.

Em horas de paz tornam-se indispensáveis as coisas comuns. Rego plantas, acendo velas pela casa, leio matérias já lidas em revistas guardadas, tomo chás perfumados, hidrato as mãos preguiçosamente, sento no chão, e passo horas ouvindo as músicas que amo de olhos fechados.
Com a percepção aguçada. 
Busco ecos.
Na solidão brutal da minha consciência vejo a vida em flashbacks. Aproveito a alegoria para contar minhas bênçãos.
Sinto-me bem.

Passo a alma a limpo.
Nesses dias o amor faz tanto sentido...
E sou tudo o que eu queria ser.

Solange Maia

fotografia - meus livros - 2014