quinta-feira, 30 de março de 2017

dessas Deusas sem cabelo...

para minha irmã Bia

A menina, muito pequenina, era guardiã de um segredo.
Mas há muito tempo não se sabia dela.
Até aquela tarde.
Costumo dizer que a aridez dos desertos parece convidar aos milagres.
E que os Deuses agem nas sutilezas, quase sempre em silêncio.

A primeira tesourada foi acre. Nada parecia justo.
Cortes secos, marciais. Linhas retas.
As mechas longas no chão pareciam querer ensinar àquela mulher o que ela já sabia: a vida tem suas próprias leis.
Ainda faltava um sentido, precisava entender os propósitos.
Engoliu seco, baixou a cabeça e chorou.

Até que, buscando encher os pulmões de ar e de vida, levantou a cabeça mais uma vez.
Foi neste exato instante que o milagre aconteceu.
Era a menina, muito pequenina, que olhava para ela no espelho a sua frente, vinda lá da infância, com seus olhos doces, lembrando-a de coragens ancestrais e mostrando a ela que seu grande patrimônio era a vida.
Demorou o olhar nela mesma. Sorriu. A partir daí, quanto mais os cabelos caiam no chão, mais leve ela se sentia. Seu corpo, agora, parecia envolvido por uma espiral de luz.
Sentiu-se majestosa. Percebeu-se incansável.
Estava pronta.
Podia ser, a qualquer momento, mais uma dessas Deusas sem cabelo...

Solange Maia