quinta-feira, 20 de março de 2014

verdade, as vezes eu minto.

Um dia ele disse estar desconfiado de mim. 
Supôs que eu talvez mentisse.
Não sobre o cotidiano ou sobre fatos, mas mais por dentro.
Era da minha alegria e das minhas coragens que ele falava.
Ele dizia que tudo parecia organizado demais, fluido demais.
Dizia achar que meu sorriso escondia alguma dor.

Estava certo.
Não conto pra ninguém, mas não sou capaz de apagar o que minha memória escolheu guardar.
Ele percebeu então, que sou também esse viés. Que muitas vezes prefiro sorrir só pra não ter que contar toda a minha historia.

Verdade. Às vezes eu minto.
E ele sabe o que eu sinto, sempre e a todo instante. 
Os outros não, os outros só imaginam.

Pedi então, que ele ficasse bem perto de mim.
E segurasse forte a minha mão. 
Afinal ele sabia...
não tenho mesmo toda essa coragem.

Solange Maia

domingo, 16 de março de 2014

o pedaço certo de mim...

Primeiro fui eu.
Agora era ele que namorava os meus pés.
Resolveu tirar o esmalte. Segurou um a um os meus dedos e envolveu-os com o algodão molhado sem desviar os olhos de mim. A tinta vermelha dissolvida manchava a cama formando flores e salamandras. Nem a toalha úmida e quente nos fez perder a conexão do olhar. Vendo que eu o via segurou firme minhas pernas e com a boca foi desenhando desejos em mim.
Os pés, tão sensíveis a pequenos toques, foram reagindo a tudo, à língua que deslizava por eles, e entre cada dedo, onde ninguém tocava, à respiração que fazia cócegas na pele fininha da curva, do arco, e ao beijo que molhava tudo.
Depois foram as pernas, o joelho, as coxas. A virilha, o umbigo, a cintura. E ele sentou na minha frente abrindo levemente a boca, fazia isso quando misturava no sorriso o tesão do instante. Ri. Ele era sempre tão impossível de resistir. Misturava alegria em tudo que fazia.
Acho que é por isso que pra ele quero dar sempre o pedaço certo de mim.

Solange Maia

quinta-feira, 13 de março de 2014

desejo embrulhado para presente...

Um dia chuvoso, reuniões tensas, trânsito.
Chego em casa cansada, mas no pé da porta percebo que um pacote chegou. Antes de mim.
Sei que é seu.
Impressionante como o clima muda.
Tudo o que existe lá fora fica suspenso.

Sento na cama com o presente no colo, abro, e é como se o vento usasse o teu perfume. Sinto você. 
O mel da tua boca escorrendo em mim.
Sinto tuas mãos deslizando nas minhas costas, no meu peito, a respiração tropeçando no desejo, tudo pulsando uma canção. Uma vez, duas, três, sei lá. 
Uma vontade que não gasta. 

E essas são as coisas que vão nos levando ao limite do querer. Suspiro (...). Perco o fôlego.
Ainda assim consigo pronunciar algumas palavras, úmidas. 
Pergunto como foi que você pôs tudo isso num pacote ?

Solange Maia

quinta-feira, 6 de março de 2014

não há colo que baste...

para Claudia...

E, de repente, havia muitos mundos entre nós.
E uma estrada de sentimentos complexos.
Parece bobagem, mas numa relação sedimentada nas diferenças, palavras mínimas criam distâncias homéricas.

Num círculo familiar denso e complicado, nos deixamos ficar mais frágeis do que gostaríamos.
Às vezes, e por causa disso, sentia um cansaço de ser.
Numa historia de explosões que se esvaziam sozinhas, não há vitimas nem algozes.
Todos perdem.

Muitas vezes só tardiamente descobre-se que não havia competição. Não havia corrida. Nunca houve um rival.
Tudo o que se queria era o oposto dessa solidão.
                                                                             
Os anos que levei para me olhar com olhos isentos e imparciais foram cobrados com cicatrizes, eu sei, mas a gente sempre encontra uma fenda na dor, e, se tem uma coisa que sei fazer, é florir.

Aceito e transformo, mas confesso, queria fronteiras mais permeáveis, porque como diz uma amiga minha, para algumas faltas não há colo que baste. Não, não há.

Solange Maia

quarta-feira, 5 de março de 2014

com você...

Por vezes,
por algumas vezes,
a vida foi exatamente como eu queria.

terça-feira, 4 de março de 2014

saudade é o upgrade do desejo...

Era aniversário dele, e estávamos chegando de Inverness. Eu tinha escolhido um roteiro sobre trilhos, atravessando fronteiras e fusos horários, conectando as paisagens deslumbrantes ao nosso desejo. Ambos nos faziam perder o fôlego. Havia tempo que queríamos estar ali, não necessariamente em Inverness ou no trem, mas em qualquer lugar onde fossemos só nós dois.

Assim que pôde ele fez como sempre fazia, só que mais livremente. Malicioso atravessou a cabine com os olhos e foi logo tirando a camisa. Era quase como se me tocasse. Sem nem pensar tirei a camisa também. Na gente os espaços se encaixavam com naturalidade... era tanta vontade, tanta fome que qualquer gesto solto causava uma infinidade de palpitações. Sem mise-em-scéne, sem nada, éramos sempre reféns ofegantes de nós mesmos. 
A superfície gelada me fez perceber a urgência dos nossos corpos, senti o peso dele me fazendo grudar na janela, me fazendo tremer de vontade. O mundo passava lá fora, o vagão, as pessoas, a Escócia, a neve, os vales, as florestas, a cidade antiga, as ovelhas, mas nada, nada importava mais.
Éramos só bocas, beijos, pele, nuca, sexo. Éramos pleno verão.

O trem parou. A viagem chegou ao fim.
E algumas vezes parecia ser só isso.
Então eu pensava em fugir.
Mas desistia sempre.
De desistir.
Porque ficava travada na garganta a palavra saudade.

Solange Maia