terça-feira, 21 de janeiro de 2020

da melhor, e menor, casa do mundo...

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Não lembrava o nome da rua, mas soube exatamente como chegar.
As mãos trêmulas abriram a porta com vagareza. Era final de tarde e a luz alaranjada e quente invadia cada canto daquele pequeno vazio.
Não havia móvel algum. Nem poltrona, nem sofá, nem tapete, nem quadro.
Na cozinha só uma pia. Sem armários, mesas ou banquinhos. Uma paz delicada.
Abri a torneira, molhei as mãos e levei à testa, como se benta fosse aquela água.
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Alguns instantes depois subi com nossa única mobília: um imenso colchão. Coloquei no chão, bem no meio do quarto. Ficou incrivelmente desproporcional. E lindo.
Na mochila poucas roupas, um livro de histórias infantis, e uma lanterna.
Fiz de conta que estávamos acampando numa praia e, o encantamento foi tanto, que ela veio comigo. Já nem estávamos mais ali.
Tiramos as roupas e, de mãos dadas, fomos tomar nosso primeiro banho naquele novo continente.
A água quente, a névoa e o perfume no ar. Tudo nosso.
Nada em volta, mas estávamos cheias de uma presença profunda.
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Matias Aires, filósofo português, dizia que contra um campo aberto não há desejo.
Mentira. Talvez eu devesse chorar, é o que a maioria das mães teria feito. Mas, não.
Não havia vazio. Era uma noite de inteirezas, todos os espaços estavam preenchidos.
Senti tanta leveza, tudo harmônico, havia uma plenitude bonita. E minha filha. E nossos corações cheio de planos.
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Nos deitamos. Já estava escuro e quis ver mais um pouquinho o rostinho lindo que estava ao meu lado: a lanterna!
Acendi e a coloquei no chão, virada para cima. O teto foi inundado por uma porção de luzinhas. Nem sei como, mas pareciam estrelas de Natal.
Ela sorriu maravilhada e enroscou os braços em mim. Nunca me senti tão segura.
E nossa casa, finalmente habitada.
Deixamos de ser forasteiras. Éramos, de novo, donas de nossas vidas.
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E dizem que quilate é a quantidade de ouro contida numa liga.
Outra mentira.
Quilate é essa riqueza que não se vê. É sorriso escapado no meio da dor. Coragem de recomeço.
Minha fortuna inteira ali, deitadinha ao meu lado.
De resto, reconstruir a vida seria só uma questão de tempo.
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Solange Maia
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(e já se foram 10 anos... )

terça-feira, 14 de janeiro de 2020

flor de cacos...

A imagem pode conter: planta e flor
Olho para ela como quem olha para o espelho.
Demoro mais do que devia acolhendo cada pétala e cada vão.
Sou eu. Sou a flor de cacos de Bouke de Vries.
Se não fosse, por que estariam ali todas as minhas imperfeições? E cada uma das minhas assimetrias?
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Tenho sido habilidosa em esconder minhas cicatrizes e em restaurar meus fragmentos.
Uma vida que habilmente ressignifico todo dia.
Mas gosto da imensidão que vejo em cada mínima fenda, gosto do que minha incompletude proporciona: do espaço arejado que sobra para o que ainda não sei, do encantamento que sinto quando vejo beleza onde só devia ver dor.
A liberdade empresta graça a cada fragmento rearranjado, como se tivessem sido feitos mesmo para serem quebrados e depois reconstruídos.
É que sou mais das verdades do que das perfeições.
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Um talho, um corte, uma fissura e uma constatação: é pelo que não está inteiro que a vida transborda. É por causa da falta que nasce tanta presença.
Reconstruções me surpreendem sempre, mostram equilíbrios improváveis e dão sentido a tudo.
Sigo em regozijo porque sei que não existe apenas uma verdade. Uma fonte. Uma autarquia.
Olho para a flor mais uma vez e só o que vejo é qualquer sentença breve.
Ela está ali porque tudo passa. Tudo muda. E é essa impermanência que devia ser nossa medida.
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Num átimo ela pode deixar de ser flor. Mais uma vez.
Talvez por isso eu siga inacabada, imperfeita, sendo eu da melhor maneira possível.
Satisfeita comigo.
E falo baixo, como se esta fosse a maior confissão do mundo.
E é.
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Solange Maia
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Obra: "Grown from Chinese Clay" (Bouke de Vries) - 2017
Made of 18th century Chinese porcelain fragments