terça-feira, 14 de janeiro de 2020

flor de cacos...

A imagem pode conter: planta e flor
Olho para ela como quem olha para o espelho.
Demoro mais do que devia acolhendo cada pétala e cada vão.
Sou eu. Sou a flor de cacos de Bouke de Vries.
Se não fosse, por que estariam ali todas as minhas imperfeições? E cada uma das minhas assimetrias?
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Tenho sido habilidosa em esconder minhas cicatrizes e em restaurar meus fragmentos.
Uma vida que habilmente ressignifico todo dia.
Mas gosto da imensidão que vejo em cada mínima fenda, gosto do que minha incompletude proporciona: do espaço arejado que sobra para o que ainda não sei, do encantamento que sinto quando vejo beleza onde só devia ver dor.
A liberdade empresta graça a cada fragmento rearranjado, como se tivessem sido feitos mesmo para serem quebrados e depois reconstruídos.
É que sou mais das verdades do que das perfeições.
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Um talho, um corte, uma fissura e uma constatação: é pelo que não está inteiro que a vida transborda. É por causa da falta que nasce tanta presença.
Reconstruções me surpreendem sempre, mostram equilíbrios improváveis e dão sentido a tudo.
Sigo em regozijo porque sei que não existe apenas uma verdade. Uma fonte. Uma autarquia.
Olho para a flor mais uma vez e só o que vejo é qualquer sentença breve.
Ela está ali porque tudo passa. Tudo muda. E é essa impermanência que devia ser nossa medida.
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Num átimo ela pode deixar de ser flor. Mais uma vez.
Talvez por isso eu siga inacabada, imperfeita, sendo eu da melhor maneira possível.
Satisfeita comigo.
E falo baixo, como se esta fosse a maior confissão do mundo.
E é.
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Solange Maia
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Obra: "Grown from Chinese Clay" (Bouke de Vries) - 2017
Made of 18th century Chinese porcelain fragments

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