sexta-feira, 27 de março de 2020

onde a verdade esqueceu de acontecer...

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Elas liam poemas juntas, cantavam Toquinho e Noel Rosa, lembravam trechos de velhos livros, falavam de amor.
A menina olhava para a avó sempre admirada. Ela parecia não ter idade alguma. Uma avó meio atemporal.
Tocava acordeon e violão. Falava francês, inglês, italiano e espanhol. Cantava num bar a noite, ensinava teologia de dia, tinha uma cadeira na academia de letras da sua cidade e já tinha escrito um par de livros técnicos. Atemporal sim, e eclética.
Era muitas.
Brincos sempre combinando com a cor do batom. Nunca havia visto a avó com roupas de “ficar em casa”.
Cozinhava também, mas sem gostar. Assim como nunca gostou muito de brincar.
Uma mulher sensacional. Adulta, sempre muito adulta.
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A menina a admirava.
Era quase como se fosse neta de alguma pessoa famosa.
Ela estava ali, mas era meio inatingível. Meio inacessível.
De vez em quando parecia que tudo era muito mais sobre ela do que sobre qualquer outra coisa.
Especialmente em dias que um assunto levava a outro e, sem mais nem menos, a menina resolvia falar de alguma dor. Nem precisava ser dela, podia ser uma dor do mundo, do outro, uma dor qualquer.
Poemas ocasionalmente nos levam a lugares sensíveis onde moram algumas dores.
E ela era sua avó.
Dizem que avós têm os colos mais macios do mundo.
Mas não. Nunca soube como era. O colo não vinha.
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E a menina deixava para lá.
Até que num outro momento falasse mais uma vez sobre uma dor, uma falta, um medo.
E de novo: nada de colo.
A avó reagia dizendo:
- Deixe disso, tudo vai dar certo, não pense em coisas ruins.
E a menina tentava. A ideia era boa. Não pensar.
Mas não dava certo. Ela não era feita de tantas razões. Tinha um coração hiper dimensionado e de vez em quando sentia um vazio. Sentia uma dor. E queria falar sobre ela. Queria que a avó a ouvisse.
Mas não. Nunca soube como era. Os ouvidos para isto não vinham.
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A avó da menina gostava de falar só das coisas lindas. Das coisas boas, das alegrias, das euforias, das harmonias.
Com ela era sempre sobre as levezas, sempre sobre os finais felizes.
E a menina, que também acreditava nas alegrias, percebia ali, uma ausência.
Era a avó estando, sem estar.
E a menina engolia em seco. Engolia aquele distanciamento e engolia a escolha da sua avó.
Não queria, mas também engolia um pouco da admiração.
E a relação ia ficando esvaziada. A menina ficando só como plateia. Virando um par de palmas.
Se a gente não se sente alcançado descobre que a alegria, quando imposta, é só mais uma tristeza.
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E nessas horas parece que a vida para de dar e começa a tirar.
Diante dos decretos de quem quer falar só dos regozijos sobra sempre um grande silêncio.
Uma fronteira difícil de cruzar.
Um mundo onde as verdades se esqueceram de acontecer.
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Solange Maia

sábado, 21 de março de 2020

onde sei que nos encontramos...

A aniversariante está sentada no chão ao lado do marido músico. Acenderam um incenso e uma vela. A festa compartilhada de forma tão generosa com quem quiser chegar. Não estamos lá. Eles cantam porque sabem que não existem fronteiras. E tocam. Mais do que canções. Tocam almas, corações e a mim.
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Nem bem a tomografia acaba, recebo um áudio. Espantada ouço que ele rezou durante todo o tempo em que meu pai esteve lá. Cantou para os anjos. Em tempos de isolamento o senti tão perto. Amigos sabem que não existe distância.
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O rosto iluminado abandona o celular porque descobre o que nossas avós já sabiam: nhoque é feito com apenas 4 ingredientes. Decide fazer. Decide sentir a massa, sovar, entender a textura. Olha para mim lembrando de Rubem Alves: - Mamãe, cozinhar é mesmo um tipo de feitiçaria. E acho que um tipo de amor.
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Na casa de repouso as visitas estão proibidas. Mas ela dança em sua cadeira de rodas sendo empurrada pelo incrível professor. Ele sorri. Ela também. Ele não resiste, tira uma fotografia. Nos envia num desejo de aproximar. É impressionante como gestos de amor diminuem lonjuras. E naquela cena, a aluna sou eu.
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Pessoas saem às janelas. Não é protesto, nem gol, nem réveillon. Saem para agradecer. Batem palmas em reverência a todos que trabalham para a manutenção da saúde dos demais. Gratidão coletiva. Me emociono e choro. Em pé, batendo palmas.
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Moram no mesmo edifício há mais de 30 anos. Conversam com gentileza e sinceridade no elevador. Mas nunca dividiram uma pizza ou trocaram telefones. O dia amanhece e no tapete da porta de entrada um pote de álcool gel e um bilhete. Um recomendado para as mãos. O outro, para o coração.
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A cidade às margens do Paraibuna tem menos de 15 mil habitantes. Nunca nos vimos pessoalmente, mas o afeto foi alicerçado no bem querer. Ela abre as portas do seu refúgio sagrado só para que possamos respirar ar puro. Como se já não fosse imenso esse gesto, ainda garante esquilos, vinho e pão de queijo. Fecho os olhos e me vejo lá, colocando em dia conversas de mil vidas.
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Olho para o lado e o vejo. Venta lá fora e ele canta para mim depois de 14 horas de trabalho. Faz poesia na tempestade. Na vida. No caos. É meu ponto de força, meu porto seguro, meu lugar favorito. Entrelaço meus dedos nos dele com força como ele gosta. E o mundo para.
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Acho até que o mundo melhora.
E que Deus se mostra muitas vezes num dia.
E que tudo isso nos salva.
Mesmo que só por hoje.
Mesmo que só por um pouquinho.
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Talvez então, seja na dor que a gente se encontra, em nossas fraturas expostas, onde ninguém é diferente de ninguém, onde não existem escolhidos.
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Torço para que os anjos protejam nossa imensa fragilidade.
E que o amor seja a cura.
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Solange Maia

sexta-feira, 20 de março de 2020

onde foi que nos perdemos?

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A mulher apressada almoça enquanto caminha. Seu sanduíche insípido é frio, embrulhado no alumínio.
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O pai absorto, envolvido no computador, não ouve. Seu filho o chama. Uma, duas, três vezes. Toca em sua perna e desiste. Ele nem percebeu.
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O casal discute de forma imatura. Não há consenso sobre onde passar o Natal. Então gritam. E preferem o divórcio.
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A moça de bicicleta não relaxa. Não há paisagem quando se sente medo. Em seu pavor ninguém se isenta. O passeio é deserto por dentro.
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Corpos suados e entrelaçados na cama não duram. Celular em punho e foco nas redes. A tela rola e eles nem veem. É preciso estar ali, mesmo que nem um e nem o outro, saibam exatamente o porquê.
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Na academia pessoas indo aos seus limites. É preciso ter o corpo perfeito e em dia. É nojento não ter.
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O aluno agressivo não quer aprender. Deseja subjugar. Sua matemática o faz crer que: se seus pais pagam, à professora só resta obedecer.
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A menina beija sem saber sequer o nome de quem beijou. São tantos. E quantos desejar. Diz que nasceu dona de seu corpo e faz dele o que bem quiser.
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Mais preenchimento, mais boca e mais cabelo. Para os dentes, lentes. E um Dry Martini para amenizar. Ter 50 anos é inaceitável. Só pode ser uma negligência.
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O rapaz do carro ao lado sorri. Ela fecha a cara. Uma ameaça? Qualquer um é criminoso até que se prove o contrário.
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E assim vamos minguando, desaparecendo por dentro, vinculados somente por nossas vulnerabilidades.
Famintos de afetos e de verdades. Nutrindo nossos vazios com migalhas e fantasias.
Perdidos e apáticos.
Sem saber mais onde foi que nos perdemos.
Sedentos por qualquer encontro que nos lembre de quem somos.
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Por um mundo com mais amor. Por favor.
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Solange Maia

domingo, 8 de março de 2020

para a mulher da minha vida...

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Num mundo de mulheres multitarefas, sobrecarregadas por tantas coisas que devemos saber e fazer, desejo que você entenda que ser mulher não é um posto. Se hoje virou quase uma obrigação termos infindos recursos internos, sermos sempre inovadoras, poderosas, competentes, desejo que descanse. Que, a despeito de tantos estímulos, saiba encontrar paz na simplicidade, nos gestos sutis, na natureza, nas pessoas delicadas, no plano afetivo.
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Desejo que saiba ser gente, filha, antes de ser mulher. Que invista na bondade, no acolhimento, na sensibilidade... É isso que devíamos comemorar hoje, aliás, hoje e em qualquer outro dia, afinal, num mundo com tanta autossuficiência, onde vagamos entre o pertencimento e a independência, onde pessoas sentem-se atraídas por benefícios, desejo profundamente que para você, os sonhos não sejam rasos. Nem raros. E que esteja sempre envolta pelo amor.
Feliz hoje, minha filha.
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Solange Maia