sábado, 21 de março de 2020

onde sei que nos encontramos...

A aniversariante está sentada no chão ao lado do marido músico. Acenderam um incenso e uma vela. A festa compartilhada de forma tão generosa com quem quiser chegar. Não estamos lá. Eles cantam porque sabem que não existem fronteiras. E tocam. Mais do que canções. Tocam almas, corações e a mim.
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Nem bem a tomografia acaba, recebo um áudio. Espantada ouço que ele rezou durante todo o tempo em que meu pai esteve lá. Cantou para os anjos. Em tempos de isolamento o senti tão perto. Amigos sabem que não existe distância.
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O rosto iluminado abandona o celular porque descobre o que nossas avós já sabiam: nhoque é feito com apenas 4 ingredientes. Decide fazer. Decide sentir a massa, sovar, entender a textura. Olha para mim lembrando de Rubem Alves: - Mamãe, cozinhar é mesmo um tipo de feitiçaria. E acho que um tipo de amor.
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Na casa de repouso as visitas estão proibidas. Mas ela dança em sua cadeira de rodas sendo empurrada pelo incrível professor. Ele sorri. Ela também. Ele não resiste, tira uma fotografia. Nos envia num desejo de aproximar. É impressionante como gestos de amor diminuem lonjuras. E naquela cena, a aluna sou eu.
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Pessoas saem às janelas. Não é protesto, nem gol, nem réveillon. Saem para agradecer. Batem palmas em reverência a todos que trabalham para a manutenção da saúde dos demais. Gratidão coletiva. Me emociono e choro. Em pé, batendo palmas.
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Moram no mesmo edifício há mais de 30 anos. Conversam com gentileza e sinceridade no elevador. Mas nunca dividiram uma pizza ou trocaram telefones. O dia amanhece e no tapete da porta de entrada um pote de álcool gel e um bilhete. Um recomendado para as mãos. O outro, para o coração.
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A cidade às margens do Paraibuna tem menos de 15 mil habitantes. Nunca nos vimos pessoalmente, mas o afeto foi alicerçado no bem querer. Ela abre as portas do seu refúgio sagrado só para que possamos respirar ar puro. Como se já não fosse imenso esse gesto, ainda garante esquilos, vinho e pão de queijo. Fecho os olhos e me vejo lá, colocando em dia conversas de mil vidas.
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Olho para o lado e o vejo. Venta lá fora e ele canta para mim depois de 14 horas de trabalho. Faz poesia na tempestade. Na vida. No caos. É meu ponto de força, meu porto seguro, meu lugar favorito. Entrelaço meus dedos nos dele com força como ele gosta. E o mundo para.
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Acho até que o mundo melhora.
E que Deus se mostra muitas vezes num dia.
E que tudo isso nos salva.
Mesmo que só por hoje.
Mesmo que só por um pouquinho.
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Talvez então, seja na dor que a gente se encontra, em nossas fraturas expostas, onde ninguém é diferente de ninguém, onde não existem escolhidos.
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Torço para que os anjos protejam nossa imensa fragilidade.
E que o amor seja a cura.
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Solange Maia

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