quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

quando a memória me devolve alguns presentes...

Lembro-me de ter sido levada, numa manhã gelada, ao andar de cima daquela casa de vidro onde ficava o escritório dele. Uma enorme sala vazia, com teto abobadado e sem paredes. Através das enormes janelas a luz entrava enviesada formando lindos fachos luminosos que riscavam o ar e aqueciam o assoalho de madeira.
Ele pediu que eu deitasse no único tapete que havia ali, e que fechasse os olhos. Deitou ao meu lado. Uma música linda foi invadindo o ambiente, era um som acústico e acolhedor, e ficamos assim, imóveis, por uns dez minutos.

Muito próximo a mim, mas sem me tocar, ele pediu que me entregasse aos meus sentidos mais refinados até que minha percepção estivesse aguçada a ponto de sentir cada músculo meu que se movesse, cada nota que entrasse em sintonia com o meu corpo, com a minha respiração, com a nossa pulsação... Aquilo criava um diálogo entre os nossos sentidos, uma intimidade poucas vezes experimentada. Até que ele me tocou delicadamente, entrelaçando as mãos nas minhas, e falou alguma coisa bonita.

O que vivemos ali, a atmosfera e o despertar sensorial, nos elevaram a outro patamar. 
Engraçado como muitas vezes são as atitudes que permanecem, porque as palavras, as palavras voam...
Pensei nas relações que acabam, e no que nossas memórias, tão equivocadamente, levam com elas. A lembrança daquela manhã foi um presente que me permiti.
Muita coisa só faz sentido depois.
E aquele instante, tenho que admitir, foi incrivelmente vivido. 
E foi com ele.
Foi sim.


Solange Maia

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

sem anestesia...

para minha prima Fernanda, com amor...

O problema não é a dor.
O que machuca é não achar sentido para tanta coisa.
É que algumas memórias nos atiram mesmo pra fora da estrada. Muita vida passou, e de vez em quando o ar ainda parece inconstante e rarefeito.
Seria ingenuidade acreditar que permaneceríamos impunes.

A gente vai crescendo e percebe quanta tolice havia em nossos desejos de querer construir mundos que durassem para sempre. Não duram. Os mundos não.
A gente dura.
Porque a despeito de tudo a vida nos invade com toda sua intensidade, por mais que tentemos nos esconder sob as cobertas, às vezes.  E graças a Deus. Porque só assim temos certeza que lá dentro, em algum canto, a gente ainda preserva aquela menina que comia no prato colorido da casa da Avó e que tinha tantas certezas e tantos sentimentos.
Os sabores são outros, eu sei. As sensações também.
Mas a menina de cada uma ainda é a mesma.
Eu sei que é.

Algumas coisas não serão nunca, nunca compreendidas. 
E talvez isso nem tenha mais importância.
Muita coisa ganhou novo significado.
Perdemos algumas certezas, ganhamos outras...
O tempo passou sim, sem anestesia.
Mas aprendi que alguns desencantos se curam mesmo é no abraço.
Abro então, Nana, e imensamente, meus braços pra você...
Vem.

Solange Maia

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

porque eu conto histórias...

Um texto é uma entidade viva, e contém um mundo imenso dentro dele, tentei explicar. É o velho clichê sobre a ponta do iceberg. É muito mais sobre abandonar palavras do que sobre acumulá-las. Escrever é coagular, é comprimir... é deixar partir tudo que não é necessário, só pelo prazer de sabê-lo devolvido na imaginação de quem lê. É falar de uma vida que nem é mais só a sua. É por isso que uma história é bonita, completei, porque é tecida com componentes de todos nós, porque passa a ser de quem a lê.

Conto histórias por tantas coisas.
Conto por ser a maneira que sei de estender as mãos, porque minhas narrativas me humanizam, porque é um jeito de confessar meus medos e minhas coragens, porque preciso espantar tantos monstros e tantos dragões.

Escrevo como quem tira uma fotografia. Para guardar, para proteger. Escrevo para que o instante não sofra o desgaste do tempo, ou de outras experiências que muitas vezes apagam as anteriores.

Conto histórias por tantas coisas.
Conto para me lembrar de quem sou, para aproximar fronteiras, para comungar. Conto porque as historias têm aptidões para transportar quem as lê, e criam sensações, que de outra forma, provavelmente seriam inacessíveis. Conto por isso, porque sei que cada pequena prosa, cada par de linhas, contém uma vida inteira. Mas ele, ao ouvir tudo isso, e me achando tão prolixa, pediu bem menos, queria sim me entender, mas só o podia com poucas palavras...
Disse então, que conto histórias porque por mais que a vida me esfregue na cara que tudo é absolutamente temporário, ainda assim, desejo algum tipo de permanência

Solange Maia

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Dona Perfeitinha...

O verdadeiro amor não se conhece por aquilo que exige,
mas por aquilo que oferece.
-Jacinto Benavente-

A menina era limpinha. Muito limpinha.
O cabelo sempre esticadinho, as meias brancas, os pés cheirosos. Os dentes escovados, as mãos lavadas.
Estudava sem reclamar, sempre boas notas, e não falava palavrão. Sempre de bom humor, pronta para agradar a quem fosse. A menina era perfeitinha. Muito perfeitinha.
Só não sei se era feliz.

A outra menina era do avesso.
O cabelo desgrenhado era moldura para um rosto vivo. Muito vivo. Roupinha básica, colares grandes, alegrias soltas.
Se pudesse vivia sem roupa, enfeitada só pelas fitinhas do Bonfim, que adorava. Andava descalça e o troféu da sua liberdade eram os pés estarem sempre pretos. Muito pretos.
Não havia no mundo riso mais lindo.
E mais honesto.

Lembro que Marcelo Gleiser, o físico, disse uma vez que não fossem nossas imperfeições ainda seríamos bactérias. Disse ainda que o Universo era feito de assimetrias e de desequilíbrios, e que era exatamente isso que nos tornava fantásticos.
Então, Dona Perfeitinha, me desculpe, mas deixo um imenso ‘salve’ para tudo o que nos tira dessa tão limitante linha de produção !
Salve !

Solange Maia

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

borogodó...

Do jardim da casa da Avó dela,
o que mais gostava eram as flores.
Mais especificamente suas pétalas,
e as vermelhas.

O jardim era cheio de outras plantas,
mas isso nunca a interessou.
Só o que ela queria era aquele colorido.
Corria para a calçada com a saia cheia delas.
Aos poucos ia colando, uma a uma, as pétalas sobre as unhas.

Com a ponta dos dedos assim, se sentia pronta para sair.
Não era preciso nem vestido, nem nada.
Só aquele vermelho.

Tinha borogodó.
Tinha sim. Desde menina.

Solange Maia

domingo, 9 de fevereiro de 2014

derretendo as palavras...

Ele sabia da caneta tinteiro e pediu que a deixasse na cabeceira. Queria escrever para mim.
Separei o bloco de vergê também, perfumei o quarto, Portishead cantando Glory Box, e, senti desde aquela hora a vertigem do querer. Lembro-me de ter me deixado cair na cama, com o corpo entorpecido pelo desejo. E dormi.

Um tempo depois senti o corpo arrepiando com a respiração dele, que de tão próxima a mim, me despertou.
A caneta tinteiro já em sua mão retinha o azul da tinta, formando uma pequena gota, espessa e escura.
Ele a encosta em minha pele. Não havia papel algum. 
Era em mim que ele escrevia.

A pena rígida sobre o meu ventre mal me deixava respirar.
O desejo passava dele para a tinta, e depois para o meu corpo. Virava gesto. A ponta afiada arranhava minha cintura enquanto ele escrevia um alfabeto inteiro. Íamos nos fundindo, ele percorrendo minhas costas, a nuca, atrás do joelho, entre os dedos. Fui virando o corpo, deixando-o escrever, inclinando-me para frente, alongando os braços.
Ele depositou um poema inteiro em mim.
E assinou seu nome no ângulo do meu rosto.

Mas nossos corpos fundidos e suados derreteram a tinta, e as letras foram escorrendo em mim. Agora só o lençol, todo manchado, denunciava o que havia acontecido.
As palavras sumiram. E acho que nem precisávamos delas.
No quarto, para sempre a permanência do texto.

Solange Maia

domingo, 2 de fevereiro de 2014

por isso disse adeus...

Um a um ela foi deixando de lado os homens da sua vida. Todos devidamente importantes, mas nenhum que tivesse entendido de verdade seu bem querer.
Apaixonava-se por aqueles homens por que precisava deles para sentir o amor.
Era como se ela conferisse a eles algo que eles não tinham, alguma virtude capaz de sacudir suas emoções, estimular sua autoestima, diminuir seus sofrimentos.

Mas no dia a dia, como todas as coisas mil vezes fantasiadas, a realidade a deixava sempre um bocado desiludida.
Eles diziam que a amavam de muitas formas, e embora ela quase nunca sentisse, não partia quando devia mesmo assim.
E isso ia doendo dentro dela.
Palavras envoltas pelo tecido frágil do desejo só aumentavam sua dor.
Ela queria alguém para uma viagem mais longa.

Por isso disse adeus. Um a um.
Sem ninguém ao seu lado ela se sentia mais livre para discordar de Proust quando ele dizia que o amor era uma tortura recíproca. Não... ela preferia o amor que fosse uma ternura recíproca !
Estava cansada de parecer essa amante Proustiana, tragicamente dependente e masoquista.
Dessa vez ela queria ser feliz. 
Tudo valera a pena, ela sabe, mas bonito mesmo vai ser o dia em que ela, de verdade, escolher ficar. 


Solange Maia