Mais que as alegrias.
quinta-feira, 31 de março de 2016
Deus nos abençoe...
- A benção, amigo.
- Deus te abençoe, minha amiga.
E nossos olhos despediram-se.
Não como se não fossemos nunca mais nos ver,
mas agora tínhamos nossos próprios caminhos para trilhar e uma quantidade bem
menor de palavras a serem ditas ou trocadas, um hiato que agora seria
preenchido muito mais pelas lembranças.
Engraçado como agora que tínhamos a benção
um do outro, nos sentíamos prontos, de fato, livres para partir mais serenos.
Seguiríamos em frente, como sempre
desejáramos.
Cada qual por seu caminho.
Fomos tão amigos, nos demos as mãos em horas
tão difíceis, falávamos infinitamente, até curar o coração naquelas horas em
que tudo o que a gente queria era não existir.
Aprendemos
juntos. Tanto.
Lembro
agora que, certa vez, ele disse com os olhos apagados que às vezes a vida cansa
tanto a gente, que naquela hora tudo o que ele necessariamente desejava não era
ser feliz, mas ter um pouco de paz.
Brigamos.
Eu achava pouco.
Era um desejo tão órfão.
Mas, acredite, amigo... nunca achei
que fosse dizer isso, mas hoje eu te entendo...
Às
vezes a paz é urgente.
Mais que as alegrias.
Mais que as alegrias.
Solange Maia
terça-feira, 29 de março de 2016
a cereja em cima do quadro...
O
vendedor de enciclopédias não sabia, mas aquela página, com a tela “O Banho
Turco”, de Ingres, foi a porta de entrada daquele menino ao mundo adulto. Vista
tantas vezes, a cena retratada, normalmente proibida ao olhar masculino, o
conduziu àquele universo novo de prazer e de volúpia. É que imagens contam
histórias que seriam encolhidas se fossem escritas. Uma obra erótica, mulheres
arrebanhadas, prontas para serem devoradas, mas ao mesmo tempo indiferentes e
presas nelas mesmas. Tão ser mulher, ele descobririu depois.
Ocupava-se daquela presença total da imagem dentro dele, e daquele recorte de tempo em que experimentava não somente uma vivência física ou uma emoção genital. A experiência envolvia ver, antes mesmo de ter visto de verdade, uma mulher tocando os seios da outra, envolvia imaginar aquelas tantas curvas roçando nele também, envolvia sentir o desejo latente e descobrir que não havia graça alguma em virar a página depressa.
Talvez
tenha sido ali que aprendeu a desejar o desejo.
E
a brincar com uma das mais antigas munições do prazer: a fantasia.
Ali
o sexo não precisava de palavras grandes demais, nem de um repertório romântico
que justificasse o desejo.
Ali
era o querer, desprovido de outras expectativas.
Ali, e enquanto era um menino, o banho turco bastava.
Mas
ele cresceu, e passou a querer mais do que saborear um quadro para voyers.
Mantinha
a apetência instintiva dos seres, mas desconfiava que era no outro que o prazer
crescia.
Queria
um gatilho especial.
Queria
sentir-se presente para alguém.
Queria
o amor.
E ser
amado.
Desejado,
além de desejar.
Ele
sabia que esta era a cereja em cima do quadro.
Solange Maia
* Imagem: O BANHO TURCO - Jean Auguste Dominique Ingres (1780 - 1867)
sábado, 12 de março de 2016
uma porção de mulheres...
Algumas noites são mais longas que outras porque contam histórias que nunca poderiam ser contadas no frescor das manhãs.
E foi assim, na madrugada, conversando sobre trabalho, filhos e política, que ela me trouxe para mais perto de mim.
Me ajudou a lembrar que não sou feita de linhas retas, nem de ferro forjado.
que amo e que preciso escrever. Que aceito flores e que sei pedir perdão.
Me ajudou a lembrar que tudo nessa vida é provisório, e que nossas dores passam.
Ela sabe que trago uma renúncia escondida nos olhos, embora eu tente, quase o tempo todo, disfarçar.
Ela tem uma porção de mulheres por dentro. É habitada. Faz barulho mesmo quando silenciosa.
Impossível ser resumida. É ampla, uma flexão gramatical de número... e amiga, dessas que a gente praticamente não acredita que existem.
Fica viúva das coisas que morrem na gente, acolhe sem julgamentos, acalma com aconchego.
Ela é mulher.
E, como toda mulher, é um segredo.
Solange Maia
para Gisella Lucioni
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