sexta-feira, 9 de março de 2018

ela nunca foi um lar...


Ela não queria ficar velha. Conseguiu.
Tinha quase 100 anos e nela não se via o tempo, vivia ao sabor dos seus desejos e conveniências, nascia junto com o sol, todos os dias, e punha-se somente se quisesse.
Construiu suas relações de forma elegante e líquida. Sempre cordial, educada, mas sem entregas reais.
Para ela, o afeto e as longas conversas eram tolices, incômodos, na verdade.

Investia seu tempo na aquisição de conhecimentos acadêmicos, idiomas, culturas, livros, músicas, mas nunca, nunquinha investiu na construção de alianças, nunca em relações duradouras e nutritivas. Nunca se demorou em alguém.
Como desconfiava que o mundo podia ser muito mais do que um conjunto de conhecimentos, construiu defesas emocionais que mais se pareciam com fortes prontos para esvaziar qualquer apreço familiar. Tolices.

Passou a vida estabelecendo prioridades, enfileirando preferências, porém, sempre lhe foi custoso demonstrar seus sentimentos. Faltam-lhe experiências táteis. Faltava-lhe o outro.
Com uma resposta sempre pronta na boca ia gravitando entre suas erudições e suas ausências, metade orgulho, metade falta.

Viveu por conta própria, curando feridas emocionais que eventualmente não pôde evitar, polindo seus afastamentos.
Construiu distâncias.
Agora, secular, torço para que seu patrimônio seja o esquecimento. Torço para que não se sinta tentada a fazer um balanço, para que suas ausências a salvem, para que não se sinta afetada, para que seja seu próprio abrigo.
Tanto esforço para preservar suas convicções, que acabou inconsistente.
Faltou-lhe repertório.
Era uma casa bonita, mas nunca havia sido um lar.

Solange Maia

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