sábado, 27 de outubro de 2018

ne me quitte pas...

 
O amor vinha sempre revestido de uma escolta de aspereza, eu sei.  Nem mesmo palavras escolhidas em compotas açucaradas conseguiam encobrir seu maior desejo: queria ser livre.
Livre e desobrigada das pessoas.
E a ideia do desprendimento era sempre tão tentadora que te fazia desejar viver distante.
Não gostava nem de interferências nem de opiniões.
Reservava para si seu recôndito em frente ao mar.

Você não sabe, mas eu torcia para que fosse mentira, só um capricho, uma teimosia.
Ficava imaginando que talvez tivesse havido um tempo em que você gostasse mais dos afetos e das presenças.
Mas de tanto repetir que amava sua independência só o que criou foi um distanciamento. Uma ausência.
E o tempo, impetuoso, decorre insensivelmente sem conceder chances de bis.
Passou.

E agora? Agora é como se houvesse um toque de recolher mudo: não se ouve, mas sabemos que está lá.
Talvez por isso os dias estejam nascendo mais escuros, cheios de horas vagas, cheios de vazios.
Encolho-me de frio. Sinto um cansaço tão grande que dá vontade de chorar.

Quando penso onde você está agora, tudo em mim desmorona.
Então fecho os olhos e te tiro dali.
É de novo aquela mulher linda. Segurando o microfone com os olhos fechados, num bar perto da praia.
Sua voz aveludada começa a canção: “Ne me quitte pas” ... Engulo em seco.
Finjo que não morro por dentro e torço para que o tempo lhe devolva o seu mar.
Acreditar é meu modo de tornar suportável o insuportável.

Solange Maia

Um comentário:

  1. Diante do mar, só, nunca terá tido pressa em se interrogar. Para trás terão ficado percursos, ligações que agora já não são urgentes. O seu amor já partiu e cada passo mede-se ao ritmo de cada maré. Não importa se as interrogações vêm sem resposta, depositadas aos seus pés a cada onda que se desfaz na praia. Os seus olhos já não distinguem um azul de outro azul. Já tudo se passa dentro de si. E mesmo que distinguissem não tinha importância. Saberá dominar a solidão, como a utilizar. Escolherá as recordações certas para contar - se lhe apetecer contar - a quem deixar aproximar-se de si. Talvez conte que adora ainda canções em francês, talvez cante "ne me quitte pas", quem sabe...
    Em frente ao mar tudo parecerá imenso. E ao longe ela parecerá uma ilha, cada vez mais pequena, um ponto. Até ser aquela ave que apenas espera que a maré suba para partir antes do anoitecer.

    O seu texto lindo, Solange, levou-me a estas palavras, talvez um conforto.

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