sábado, 11 de maio de 2019

onde moram os milagres...

Para Isabela...
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Você era pequenininha e eu te levava para ver o sol se pôr.
Ficávamos 1, 2, 3 horas olhando o céu e conversando. Você ainda conhecia poucas palavras, mas apontava para o céu e olhava para mim. Era o seu jeito de dizer tanta coisa. Quando via um pássaro arregalava os olhos. Quando o céu mudava de cor ficava em silêncio. Quando a noite chegava, abandonando os últimos laranjas, você apertava ainda mais o seu corpo no meu.
Lembro de pessoas me perguntando se isso não era uma atividade chata para uma criança tão pequena. Talvez fosse mais interessante se você a levasse a um parquinho, se fossem assistir um filminho ou simplesmente brincar com outras crianças, diziam. Fazíamos isto também. Mas o que eu queria mesmo era que você conhecesse o sagrado.
E não renunciava a te levar para ver o sol se pôr.
Presenciar aquele espetáculo tão singelo e ao mesmo tempo tão potente era exatamente o que eu queria te mostrar.
Queria te ensinar a ver. A sentir. A contemplar.
Queria aprender a ver o que os seus olhos viam. Outros ângulos, outras percepções.
Queria que nunca fossemos reduzidas em nossa capacidade de existir.
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E lá ficávamos, na beira da represa, algumas vezes sozinhas, mas sempre tão absolutamente habitadas.
Havia muita grandeza nos envolvendo.
Muito de Deus estava ali.
A verdade é que não o imagino distante, inatingível, assustador. Sinto-o perto. Sinto-o no ar, no pulsar, no desconhecido, no chão e em cada célula sua.
Viver é muito essa capacidade que desenvolvemos de olhar. Olhar para o mundo e entender que somos um pouco de tudo aquilo.
De cada imensidão e de cada pequenez. De cada mistério e de cada revelação. De cada recuo e de cada investida.
É assim que a gente enriquece, filha, neste acolhimento do sagrado.
E, como sei que a gente aprende observando, quero ser, para você, sempre oferta.
Sempre sua mãe.
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Penso em Mia Couto. E em como ele também descobriu esse tipo de abundância.
Ele conta que em muitos lugares pelos quais viajou encontrou pessoas que não sabiam ler livros, mas que sabiam ler o seu mundo. Liam os sinais da terra, das árvores e dos bichos. Sabiam ler as nuvens e o prenúncio das chuvas. Naquele universo de outros saberes, havia a compreensão de que era ele o analfabeto.
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Torço para que saibamos reconhecer essas riquezas.
E para que sejamos sempre uma pergunta, meu amor.
Porque, se nesta missão de ser mãe, eu tiver lhe ofertado esse olhar sempre faminto e absolutamente encantado, sou então, a pessoa mais feliz do mundo.

Te amo, filha.
Mamãe

Um comentário:

  1. Ver vem antes de falarmos. Ainda não dizemos a primeira palavra e já o nosso olhar se dirige para o que o rodeia. Mais tarde, aperceber-nos-emos que assim como vemos também somos vistos. E esse olhar mútuo é o mais importante dos diálogos. Quereremos saber como os outros vêm o que nós vemos.
    O olhar será sempre um acto individual: só olhamos para aquilo que queremos. E entre o que olhamos e o que conhecemos haverá sempre uma distância a separar. O modo como observamos será sempre influenciado por aquilo que conhecemos, pelo que somos, enfim. Olharmos para as coisas será como que recuperarmos algo que tínhamos perdido ou que nos roubaram, há momentos ou por muito tempo, não interessa.
    Num tempo em que, a par de imagens autênticas vivemos rodeados da profusão de reproduções de outras imagens, há uma tentativa de distracção, de nos desligarem do nosso passado, de nos desviarem do conhecimento de onde viemos, da nossa autenticidade. Desligados do que fomos, avaliaremos menos bem o que devemos fazer, seremos presa fácil no futuro.
    Mãe e filha junto da represa, observando o pôr do sol, miram a beleza de algo que é mais forte do que o homem, que o homem não consegue dominar. Fazem-no como outras mães e outras filhas o fizeram há milhares de anos. Sentir-se-ão um pouquinho mais de Deus, como diria uma pessoa muito querida. E como John Berger disse, quando perguntado sobre o significado do belo, "talvez o belo seja não aquilo para o qual olhamos, mas aquilo que nós queremos que nos olhe".

    Seu texto é de uma beleza sem fim, Solange.

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