terça-feira, 19 de fevereiro de 2019
Caramelos Espanhóis
Embora fosse feita de vastidões, a menina morava numa cidade pequena de passarinhos nos quintais.
Aprendera desde cedo que o mundo existia imenso além daquele lugar. Queria saber das coisas, das diferenças e das riquezas além daquelas fronteiras. Era observadora, atenta e amava ler. Por conta disso, e de sua imaginação, tinha certeza de já ter ido à Índia, conhecido o Paquistão, as geleiras da Islândia e os casebres coloridos de Manarola.
Era lendo que fugia da monotonia.
Ou com aquelas mulheres.
De vez em quando batiam à porta de sua casa umas ciganas que vendiam latas de pêssegos em calda e caramelos espanhóis. Sabia que estavam chegando pelo tilintar dos berloques de suas pulseiras. Eram muitos e todos tinham sua própria história. Estrelas, ânforas, sereias, mas o preferido da menina era um enorme dente de onça que, uma delas dizia ter sido morta por seu avô, numa luta que teria salvo a vida de um garotinho na Bahia.
Aos olhos da menina as ciganas eram um recorte da realidade, uma ousadia, a lembrança mais colorida da sua infância. Desconfiava que eram nascidas por aqui, embora falassem romanês. Tinham a pele cor de jambo e o corpo curvilíneo, mas para ela, eram sempre estrangeiras.
Madalena era o nome da cigana mais velha, uma mulher misteriosa que contava ter pai romeno e mãe basca. Dizia ter orgulho de suas raízes, e contava exaltada que muitas pessoas famosas tinham origem cigana: Elvis Presley, Charles Chaplin e havia até quem considerasse Jesus Cristo um cigano.
Aquelas mulheres falantes eram figuras literárias, personagens escapados de um dos livros da menina. Era impossível desviar o olhar. Tinha na memória a tarde em que uma delas tomou suas mãos, enquanto contava ser neta, bisneta e tataraneta de oraculistas. Dizia ser benzedeira, vidente e cartomante. Com olhos arregalados a menina ouviu com atenção as previsões para o seu futuro: casaria tarde, percorreria o mundo por causa de sua inteligência, ganharia um prêmio importante e, madura, sentiria saudade daquela casa em que estavam.
E assim eram as tardes em que as ciganas estavam na cidade. Cheias de burburinho, curiosidades e momentos inesquecíveis.
Depois que partiam, a mãe da menina, sabendo de seu encantamento, fazia sempre a mesma coisa: colocava os pêssegos e os caramelos sobre a mesa da sala de jantar permitindo assim, que a mistura dos aromas doces perfumasse deliciosamente a casa, e a vida, deixando tudo com cheiro de fruta, açúcar queimado e amêndoas.
Os anos passaram, a menina cresceu, não se casou, foi estudar em outro país e por lá ficou. Numa cidade vertical de sombras firmes e gente apressada. Tornou-se mais árida do que gostaria, e, embora fosse presidente de uma premiada ONG que promovia alimentação sustentável, sentia uma saudade que era quase fome. Precisava ter de volta aqueles aromas e sabores da sua infância.
Ela sabia que os caramelos representavam o limite daquela fronteira. A passagem de volta.
O único pecado gastronômico permitido.
Em noites mais frias, sozinha, em sua casa de paredes impecavelmente brancas, ela acendia um fogo brando.
Enquanto derretia o açúcar na panela, voltava à pequena cidade e às tardes com as ciganas.
Naqueles segundos, de olhos fechados para aguçar o olfato, tinha dúvidas se não seria, ela própria, Madalena.
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